Eu quase não acredito que demorei tanto para assistir ao The LEGO Movie. Pra compensar, assisti duas vezes essa semana para rir mais uma vez das gracinhas e para aproveitar toda a maravilhosidade do filme.
Ele me levou para um lugar especial onde eu guardo as minhas peças de LEGO mentais e todas as construções que eu já criei na minha infância e que nem existem mais.
Isso significa que vou escrever sobre o filme? Significa.
Mas, para falar das questões que rondaram a minha cabeça, desmembrei o texto em blocos, afinal, estamos falando de LEGO.
Bloco 1: Que animação fera!
Para começar, o visual é impressionante. Foi o que primeiro me fisgou.
Quando o filme saiu eu nem dei nenhuma bola para ele porque, numa ocasião em que recebemos uma criança aqui em casa, vimos uma animação de LEGO que acabou se tornando a minha referência. Essa coisa pavorosa
aqui, uma animação bizarra e mal feita com uma história simplesmente ruim demais para eu me lembrar de qualquer coisa.
Daí quando acidentalmente comecei a assistir ao The LEGO Movie, de cara percebi o quanto era diferente. E lindo. Os bonequinhos se moviam como bonequinhos de LEGO reais. As peças se pareciam com pecinhas de LEGO que eu já tive. As cores, as texturas, pareciam peças de plástico, aquele plástico LEGO que tantas vezes manuseei nas minhas próprias mãos!
E absolutamente tudo no filme é feito de LEGO: as construções, os veículos, as explosões, as nuvens, a água!
Ok, posso ter ficado empolgada demais com os detalhes. Mas foi esse detalhe que me ganhou. Depois pesquisando sobre o filme, descobri que todas as peças que aparecem no filme realmente existem em alguma coleção LEGO.
É de se admirar todo esse detalhismo e cuidado na produção do filme.
E o que também me confundiu bastante. Quando assisti da primeira vez, eu só ficava me perguntando MEU DEUS COMO FIZERAM ESSE FILME e ficava alternando entre “só pode ser stop motion” e “não, não, é todo em 3D”.
(você também tem dessas loucuras de não conseguir só curtir a história porque fica se perguntando como fizeram o filme ou determinada cena?)
Acabei apostando que era stop motion (técnica usada nos chamados “
Brickfilms”), mas eu estava errada. É uma animação 3D feita no maior capricho para se parecer com… stop motion!
Isso já tornaria o filme bem foda, mas aí colocam quem? Chris Pratt (o Andy de Parks & Rec e o Star Lord de Guardiões da Galáxia) para dublar o protagonista e mostrar que não tem ninguém que interprete melhor caras tapados, bobões e super fofos.
Tem também outra figura de Parks & Rec que eu amo, o Nick “Ron Swanson” Offerman. Tem Will Ferrell, tem Morgan Freeman (pela primeira vez dublando animação) e tem até Liam Neeson!
O filme também conta com a participação de vários personagens famosos, como Han Solo, Shaquille O'Neal (dublado pelo próprio), Mulher Maravilha, Gandalf, Dumbledore… E tem o Batman. Melhor personagem do filme. Melhor Batman de todos os filmes.
Bloco 2: Propaganda disfarçada?
Não pude deixar de pensar em como o filme é, na verdade, a maior e mais efetiva propaganda que já fizeram de LEGO em todos os tempos.
As principais características de uma propaganda estão lá: mostrar o produto o tempo inteiro e de uma forma tão, tão atraente que leve as pessoas a desejá-lo.
É só a gente se lembrar que todas as peças e bonecos que o filme mostra realmente existem dentro de alguma caixinha de LEGO à venda em qualquer loja de brinquedos por aí. Imagine então quantas crianças não saíram do cinema enchendo o saco dos pais para comprarem mais uma caixa do brinquedo (é o que eu faria se eu tivesse oito anos de idade).
Propaganda infantil sem ser propaganda de verdade. Mas hoje qual o filme blockbuster para crianças que não é? Os Vingadores, Star Wars, Big Hero 6… o que esses filmes vendem de bonecos depois não está no gibi.
(aliás, tenho refletido muito sobre os “filmes para crianças” que eu cresci assistindo e os que são feitos hoje em dia – mas isso é papo para outro texto)
Isso me lembrou de um livro que li há alguns anos: “Como a Starbucks salvou minha vida”, que eu li quando eu ainda era publicitária – e céus, o
texto que escrevi sobre o livro parece pertencer a outra vida.
Mas o livro conta a história real de um ex-publicitário que, depois de trabalhar décadas na propaganda, é demitido e fica na rua da amargura – até conseguir um trabalho numa loja da Starbucks.
O que ele narra sobre essa experiência é emocionante. De quebra, a gente se apaixona pela marca, pelos cafés que ele descreve, pela relação das pessoas com a Starbucks e pela relação dos funcionários entre si e com a empresa.
A melhor propaganda que a Starbucks poderia ter feito. E o melhor: nem parece propaganda.
Anos depois, LEGO vai e faz a mesma coisa. Uma propaganda engraçada, envolvente, cativante e que não menciona a palavra “LEGO” nenhuma vez. Só está no título mesmo.
Ah, mas é mais uma propaganda que mostra só meninos brincando, claro.
Então não sei se gosto da propaganda de LEGO por parecer um filme que me cativou tanto, ou se gosto menos do filme por saber que, no final das contas, o objetivo era só me fazer comprar um brinquedo caro.
Ainda não decidi.
Bloco 3: Fodam-se as instruções (contém spoilers)
Apesar do apelo consumista e da representação feminina uó (a Wildstyle chuta traseiros, não está ali para ser salva por ninguém, mas é objetificada por praticamente todos os outros personagens, além de ser a única mulher entre os protagonistas), tirei do filme uma mensagem interessante.
A história é sobre um mundo feliz, com todas as coisas em seus devidos lugares, graças ao comando do President Business, dono de uma corporação que monopoliza todos os produtos e serviços que circulam naquele mundo.
President Business tem uma obsessão com a perfeição. As peças precisam estar encaixadas de acordo com as instruções e os mundos não podem se misturar. Peças de Velho Oeste no mundo de Velho Oeste, peças da cidade no mundo da cidade, peças medievais no mundo medieval e assim por diante.
Seu grande plano, como todos os vilões, é controlar todos os mundos usando uma super-arma conhecida como Kragle (que na verdade é uma cola-tudo do mundo real), para garantir que nenhuma peça saia do lugar “certo”.
Mas existe uma profecia de que O Especial encontrará a Peça de Resistência (a tampa da cola) e assim libertar todos os mundos da tirania.
Quem acaba encontrando o artefato é Emmet, um bonequinho operário absolutamente medíocre e apegado às regras, que continuaria em sua vidinha sem graça se não fosse Wildstyle carregá-lo para a jornada onde ele, contra todas as evidências e apesar de todas as trapalhadas, se descobre um herói capaz de deter o plano do President Business.
Na verdade, toda essa aventura é um garoto brincando escondido com a coleção de LEGO do pai e bagunçando todas as construções milimetricamente criadas de acordo com as instruções.
O pai, Will Ferrell, não deixa o filho brincar porque ele usa o LEGO de “forma adulta”, como colecionador. É ele o obcecado com a perfeição daqueles mundos e quem usa cola para que os bonequinhos não saiam do lugar – o President Business da cabeça do garoto apenas representa isso. A criatividade do filho não é bem vinda ali.
Nesse momento, Emmet está caído no chão do porão e vê a conversa entre pai e filho, num momento totalmente “fora da Matrix”. É aí que ele entende o que é preciso para convencer President Business a parar com essa loucura de querer colar tudo.
(Aliás, o filme tem várias referências a Matrix. A profecia de “o escolhido”. Uma mulher bad ass que conduz “o escolhido”: Trinity e Wildstyle. Um mestre que ajuda “o escolhido” a liberar o potencial de sua mente: Morpheus e Vitruvius. Morte e ressurreição do “escolhido”. As máquinas do President Business que espalham cola na cidade se parecem muito com as máquinas que invadem Zion. Uma cena de luta do Vitruvius contra os robôs do President Business se parece muito com a cena do Neo lutando contra o exército de Agentes Smith. A forma que o “escolhido” passa a enxergar as peças depois que seu poder “desperta”. Enfim, o filme LEGO é Matrix for Kids)
O filme contrapõe duas visões: seguir o manual e manter tudo em seus devidos lugares; libertar, abrir espaço para o novo e misturar o que é diferente. Não preciso nem dizer de que lado eu estou, né?
Se você também brincava de LEGO, deve se lembrar que o brinquedo vinha com um encarte com algumas instruções para montar as peças de acordo com a figura que vinha na caixa.
Eu seguia essas instruções uma única vez: para estrear as peças. Depois perdia a graça montar a mesma coisa. Aí é que as coisas ficavam interessantes: quando eu mesma criava os cenários, inventava histórias, trocava as partes dos bonequinhos entre si, montava coisas que não estavam previstas no manual.
Mas a gente cresce. E aí começa a se parecer com o President Business mais do que gostaria (exceto pela parte da riqueza). Alguns mais do que os outros; felizmente, nem todas as pessoas ficam obcecadas por controle, apegadas às regras, ao status quo e à visão de que pessoas diferentes não podem se misturar.
Ainda assim, os Presidents Business da vida real estão por aí, em todos os lugares. Todos mesmo.
O problema é que não há cola-tudo o suficiente para que as pessoas e a sociedade onde vivem tornem-se estáticas, perfeitas, para que tudo se mantenha eternamente conforme o manual, seja ele qual for.
Como o Emmet, fomos ensinados a acreditar no manual. Acreditar que seguir as instruções é o certo a se fazer.
Vista-se assim. Aja daquele jeito. Tenha filhos nessa idade. Trabalhe assim. Relacione-se com esse tipo de pessoa. Viva num lugar assim. Fale dessa maneira. Use esse discurso. Encaixe-se.
Mas foi com o próprio LEGO que aprendi que não existe uma forma “certa” de se encaixar.
Você pode misturar mundos diferentes. Pode desconstruir para construir algo novo. Pode inventar algo da sua cabeça. Pode adaptar o que está no manual. Pode encaixar o que quiser onde achar melhor.
Se com pecinhas de plástico é possível fazer tanta coisa nova e maravilhosa, imagine com pessoas de carne e osso, que têm um milhão de possibilidades a mais?
Não precisamos seguir o script que nos deram. Especialmente se esse script nos deixa de fora da brincadeira. Foda-se o script. Joga o script fora. A gente pode construir uma história que caiba mais gente, com toda espontaneidade, diversidade e profundidade que faz com que sejamos tão incríveis.
E pra isso nem é preciso viver uma aventura perigosa com robôs, vilões e naves espaciais à procura da Peça da Resistência. Para construir esse novo mundo, só precisamos dar o primeiro passo: aceitar o outro. Aceitar que não somos o parâmetro, não somos a medida de todas as coisas.
Aceitar que o que é diferente de nós, por mais que pareça não se encaixar, também tem espaço nesse mundo.