Aproveitando o tema desta semana sobre ações coletivas, resolvi lançar no grupo de leitores do FB uma experiência: escrever um texto de forma colaborativa. Cada pessoa escreveria um trecho do texto, continuando o trecho do comentário anterior.
O desafio era não pensar como um autor/autora individual, mas pensar nos outros, em quem escreveu antes e em quem continuaria depois. Pensar no coletivo.
Uma coisa interessante que observei é que as pessoas se deixam levar pelo clima de quem chegou antes delas. Nos momentos em que se falava de bloqueio criativo, as pessoas seguintes tendiam a ir por esse caminho; nos momentos em que as pessoas começavam a pirar na batatinha, as pessoas seguintes tendiam a levar a loucura para níveis ainda maiores.
Também achei interessante observar como é imprevisível o resultado de algo feito por tantas cabeças juntas, algo que chega a lugar nenhum e em lugares inimagináveis, tudo ao mesmo tempo. Que lindo caos.
Bem, a história ficou tão grande que precisei editar e resumir um cadim para publicar na newsletter! Espero que gostem do resultado final ;)
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Esta semana recebi um convite estranho: escrever em grupo.
Não, não, escrever em grupo não é o problema. O problema é que a regra era continuar o trecho anterior, e eu seria exatamente a primeira a colaborar. Oh, céus. Por que fui me meter nesses grupos de gente criativa?
Mas é claro que, depois do medo inicial, as ideias começaram a fluir. Diz uma frase apócrifa que você é a média das cinco pessoas com quem você anda. E não é que essa ideia de andar com gente criativa realmente me ajudou a destravar os neurônios?
Aceitei o desafio, peguei a minha xícara e café e… e… e… a tela continuava branca e a xícara esvaziou-se, todas as minha ideias torram com os grãos.
Respirei fundo e comecei a escrever um trecho. Li uma vez que com o sistema de likes e retweets nas mídias sociais, o ser humano se tornou um viciado em curtidas. Não sei ao certo se estava esperando likes no meu trecho ou apenas vendo como a história ia se desenrolar após meu toque criativo.
Comecei a ler e reler os comentários anteriores, pensando em como continuar essa história. E que tema legal, né? O tal do colaborativo, o coletivo, as ciclovias de São Paulo versus o transporte privado. Fico pensando, aqui no meio do texto, onde vamos chegar? Qual será o resultado?
O silêncio constrangedor na minha cabeça que eu achei que fosse me travar foi na verdade o que me permitiu escutar o estralo da ideia. Uma percepção muito profunda de que sou apenas mais uma formiga, carregando um pedaço da mensagem para a próxima, para que ela passe para a outra, e assim por diante.
Foi inevitável não pensar em formigas depois de lembrar do trânsito de São Paulo. A gente apenas segue o fluxo, compondo uma rede, uma teia de consciência muito maior do que nós. O que é bem louco. Somos tão diferentes e mesmo assim algo parece nos conectar.
Parei pra pensar nas nossas afinidades – os gatos, a vontade coletiva, o respeito, a curiosidade... Seria melhor pegar aquele outro caminho, falar das nossas peculiaridades? O "nós" já não está embutido no coletivo?
Enquanto as ideias não vinham, deixei de lado a tela em branco (porque essa palidez dela me cobra muito) e passei a observar o todo. Senti um acolhimento, um aconchego.
– Escrever contigo? De novo?
– Sim! – ela disse, num convite tão sincero e natural que a vergonha inicial me tomou por inteira.
Enrubesci só de digitar algumas palavras. Talvez não tivesse tanta coisa para colaborar assim... Talvez não fosse tão criativa quanto os que já escreveram, ou os que ainda viriam.
Mas sentei, escrevi, li e reli e vi que não era “menos" ou “mais" que ninguém, que era só – como já disseram antes – “diferente". Segui escrevendo e, quando vi, tinha feito. Tinha conseguido. Tinha deixado o “talvez" de lado e apertado o enter. Tinha feito a minha parte, pequena, mas ainda assim minha.
Veja bem, muitas vezes nem nos damos conta da nossa contribuição para o formigueiro. Lembrei de um trecho do filme Waking Life, em que uma das personagens se vira para um estranho em que tinha acabado de esbarrar e diz: "sei que não nos conhecemos, mas não quero ser apenas uma formiga, sabe? Quero ter momentos humanos reais"
Após pegar o gancho e contribuir para a minha parte, percebi que estávamos fazendo mais ou menos a mesma coisa. Não sendo formigas, mas compartilhando nossos anseios humanos coletivamente.
Achei isso lindo e comecei a pensar mais, me perguntando se eu conseguiria acessar as outras consciências que compartilhavam comigo aquela conexão. Estendi os braços tentando alcançar algo e senti o calor de um braço bem próximo, o braço de alguém que eu não conseguia ver, mas que eu SABIA que estava lá. Foi quando esse alguém sentiu meu toque e disse:
– Ainda bem que você veio. Tenho te esperado por muito tempo. Você esteve tão próxima de chegar tantas vezes, mas sempre algo acontecia e você voltava. Você pode me sentir agora? Ainda não tenho certeza de onde habito, ainda não sei ao certo do que sou formado. Mas, e agora, o que quer fazer?
Enfim, uma estranha sensação de alívio tomou conta de mim, aquele "talvez" se tornava algo concreto. Sim!, eu estava trabalhando e construindo com todos, mas algo me fez sair daquele estado de felicidade. Era o som da campainha a tocar. Mas quem poderia ser? "Encomenda! Carteiro!"
Era um carteiro existencial. Que entregava sentimentos no lugar de cartas, experiências no lugar de encomendas e possibilidades no lugar das contas.
Lembrei de Borges, mas esse carteiro está além da loteria da Babilônia. O carteiro existencial não sorteia destinos, entrega possibilidades existenciais aleatórias. Então o carteiro sumiu, assim como o espaço ao redor mudou! Estaria, eu, enlouquecendo?
Não deveria ter aberto a porta, não deveria ter aberto a boca, não deveria ter começado a escrever! Teria eu arruinado tudo, acabado com a conexão?
Estava tudo novo e diferente e eu contemplava uma cidade que nunca tinha visto antes. Demorei um tempo para entender o que tinha acontecido. Não, eu não tinha enlouquecido. Mas o que eu vou fazer tendo uma existência nova? Como agir, como ser uma outra pessoa?
Decidi abrir a encomenda. E me surpreendi ao ver que dentro da caixa havia… outra caixa. E um bilhete escrito: sua vida mudará drasticamente se você abrir esta caixa, pois você viverá coisas completamente novas. Experiências no lugar de encomendas? Respirei fundo, abri a segunda caixa e… fodeu! Nunca deveria ter começado a escrever!
Não deveria ter começado a escrever, não deveria ter aberto a caixa! Pois eis que surge uma fumaça branca, cujo cheiro me lembra os incensos da casa da minha avó.
O cheiro faz com que eu nunca mais me esqueça dessa experiência. Ele estará associado em minha memória do que aconteceu ou vai acontecer.
Eu sentia meu coração acelerar, assustado. Pois dentro da caixa havia um gênio! O estereótipo mais batido de um gênio. Eu estava prestes a desejar algo quando ele disse que eu não tinha mais direito aos meus desejos, que eles já haviam se realizado. Fiquei sem entender nada e perguntei a ele:
– Você é o carteiro? Porque vocês têm o mesmo bigode e a mesma pinta estilo Marilyn Monroe. Deve ser o senhor o causador de tantos devaneios.
– Sim, é a resposta para suas perguntas – ele respondeu – Mas se você olhar bem, vai perceber que não sou exatamente um carteiro.
Então percebi que esse "carteiro" era, na verdade, um retrato de todas as pessoas que eu conhecia, ou seja, a personificação das minhas experiências passadas, boas e ruins.
O carteiro esperava pacientemente a minha tentativa de assimilar tudo, mas meu estado de choque não passava. O carteiro-gênio-todas-as-pessoas-e-experiências saiu da caixa, me olhou com cara de "isso vai demorar" e perguntou:
– Quer bolo de cenoura com calda de chocolate e um café? – ele já sabia a resposta, a pergunta foi só uma gentileza. Então se encaminhou para a cozinha e, remexendo nos meus armários, continuou: – Olha só, essa escrita coletiva-criativa funciona como um bolo de cenoura... você vai colocando os ingredientes e cada um não significa nada sozinho. Mas, misturando tudo e pondo no forno, ele começa a tomar forma. Vira cor, cheiro, sabor.
E convenhamos, não há nada mais gostoso do que bolo de ceno... digo, escrita coletiva-criativa!
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Quem escreveu essa doidura maravilhosa: Tereza Jardim, Lucas Shimoda, Gio Sacche, Dan Souza, Isaque Criscuolo, Julian Vargas, Alex Luna, Helen Pinho, Joana Valdameri, Marília Romão, Vinícius Martins, Mônica Menezes, Victor Sousa, Darlam Nascimento, Eveline Angelo, Júlia Carvalho, Melissa D’Arienzo, Priscila Barone, Ana Carolina, Jéssica Patrine e Rosa Soares.