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Má ôe.

Planeta SBT



Recebi aquele sinal pela primeira vez em um dia normal de trabalho, na estação de observação mais tediosa de todo o instituto. Nossos monitores e antenas voltados para um canto do Universo com uma atividade praticamente nula. Zona π.765. Conheço cantos de parede com atividade mais interessante que esse punhado de galáxias.
 
Perda de tempo total monitorar essa área. Mas alguém tem que fazer o trabalho sujo – e me disseram que seria bom para o meu currículo pegar experiência ali e depois conseguir vagas mais promissoras, em departamentos que realmente estão estudando galáxias interessantes e tentando contato com formas de vida sofisticadas. Mas não reclamo. Pelo menos posso me distrair com joguinhos durante o expediente.
 
Então aquele sinal. Veio de um lugar muito específico de onde nunca antes havia chegado nenhum sinal. Um planetinha em um sistema solar bem sem graça, a trilhões de anos-luz daqui.
 
Bem, vamos ver. Coloquei os fones e aumentei a resolução do monitor. Havia forma de vida capaz de emitir sinais, e era meu trabalho decidir se era uma civilização digna de ser estudada ou se mais um ruído insignificante nesse Universo barulhento.
 
A primeira impressão foi bem confusa. Não tive certeza do que exatamente estava diante de mim. Era um prisma hexagonal girando dentro de uma estrutura brilhante, e em cada face havia um símbolo diferente. Tudo isso movido por um som que inspirava suspense e movimento. Enquanto o prisma girava, as imagens mostravam criaturas daquele planeta, com caras apreensivas. Parece que, quando o prisma parasse, teria o poder de determinar suas vidas.


seguem imagens que anexei ao relatório
 
Precisei de algumas zano-horas até conseguir decodificar a linguagem da mensagem e para começar a registrar alguns padrões naquele sinal. Identifiquei que o padrão que mais se repetia era um tipo de canção, que dizia, conforme transcrevi no relatório: “Agora é hora de alegria, vamos sorrir e cantar, do mundo não se leva nada, vamos sorrir e cantar! La la la la la la la la Sílvio Santos vem aí!” 
 
Conforme fui adquirindo vocabulário para entender os sinais, pude descrever com mais clareza nos meus relatórios aquilo que via. Por exemplo, “Sílvio Santos” é como se referiam à criatura que mais aparecia nos sinais. Algo que vim a entender como “homem”, sempre muito bem vestido, cabelo rigorosamente penteado e um microfone saindo do seu peito, que talvez fosse parte de seu organismo.

demonstração dos poderes do ser Sílvio Santos
 
Assisti o suficiente para concluir que aquele talvez fosse o líder do planeta ou alguma espécie de divindade, pois tinha o poder de conceder ao povo a realização de seus desejos. Percebi também que era ele que comandava aqueles sinais, dizendo o que viria a seguir ou cortando para os chamados “comerciais”. As outras criaturas que apareciam ao decorrer do sinal referiam-se a ele como “Patrão”, o que acredito ser o mais alto status entre aquela espécie.
 
Certamente ele era poderoso, comparado com os outros de sua espécie, as “colegas de auditório”: ele dobrava algumas lâminas, que ali deviam ser bastante valiosas, em uma forma aerodinâmica que sobrevoava as criaturas, sedentas por agarrar algumas, enquanto o ser Sílvio Santos gritava “Quem quer dinheiro?”. 
 
Nada fazia muito sentido, mesmo assim era fascinante. E, ao mesmo tempo, perturbador. Era como arrancar a casca de uma ferida: você sabe que não deve, mas não consegue parar.
 
Pude ter uma boa ideia de como era a vida naquele planeta. Ali, as criaturas se dividiam em dois gêneros: “time dos homens” e “time das mulheres”, que competiam entre si em provas bizarras para ganhar algo que não dava para entender. Mas respeito, definitivamente, não era.
 
Suponho que tivesse algo a ver com os ritos de acasalamento da espécie e que as provas servissem para determinar os mais aptos para reprodução. Uma dessas provas consistia em pegar um balão de ar, levar correndo até o outro lado, jogar no colo de outra criatura e sentar com força até estourar, em uma evidente simulação de cópula.
 
Em outra prova, duas criaturas eram colocadas semi-nuas em um compartimento cheio de água para lutarem, na tentativa de pegar objetos chamados “sabonetes”, aparentemente escorregadios. Tudo embalado por um misterioso som ritualístico que repetia: “uba uba uba ê”. 
 
Praticamente o tempo inteiro aquelas criaturas estavam competindo em algum jogo para ganhar coisas. Às vezes, para ganhar um punhado de barras de ouro, material aqui abundante e até vulgar, mas que lá é aparentemente importante, por “valer mais do que dinheiro”. Alguns jogos envolviam roletas, outros completar palavras em um mural, adivinhando os símbolos certos, e até responder corretamente a perguntas para não ter a cara lambuzada por um creme branco.

por que eles faziam isso? Mistério
 
Acredito que ali as criaturas não tinham outro meio de ganhar a vida que não se submetendo a humilhações e jogos sem sentido. Elas topavam tudo pelo tal “dinheiro”. Até deixar um apresentador entrar em suas casas para remexer em suas coisas à procura de objetos incomuns e bastante específicos, como um “disco do Gugu” ou um “videocassete”. E ainda levar cornetadas ensurdecedoras caso não as possuíssem.
 
As condições de vida naquele planeta eram bastante difíceis, e seus recursos bastante escassos. Outra evidência disso é que os filhotes trabalhavam como os adultos, conduzindo jogos de roletas com outros seres de pouca idade do outro lado da linha.
 
Crianças também jogavam e concorriam ao mesmo dinheiro desejado pelos adultos, embora o prêmio mais desejado fosse um tal “Playstation, Playstation”. Talvez esse prêmio valesse mais do que barras de ouro?
 
Não parece um problema para essa espécie expor suas crianças a cenas de nudez, sexo, violência, ou até mesmo a formas muito sádicas de torturas psicológicas, como fazê-las pensar que vão ganhar um prêmio e revelar que o que elas ganharam, na verdade, foi a chance de ser aterrorizada por um monstro peludo escondido dentro de um armário. Esse parecia ser o conceito de jogos divertidos naquele planeta.

uma das criaturas mais medonhas
 
Em outros momentos, quem conduzia os jogos eram criaturas todas do mesmo gênero, no caso, as que acima defini como “time das mulheres”, que se diferenciavam por ter uma parte traseira muito mais desenvolvida e o tempo todo em evidência, como se fosse um segundo rosto, além de usar vestimentas muito menores. Elas eram as próprias peças desses jogos, dançando e fazendo coisas no palco para que as pessoas que participassem pudessem ganhar prêmios. Em um desses jogos, elas se colocavam uma ao lado da outra e ficavam atirando uma bola até que a voz do participante dissesse “para”, momento em que se devia acertar o nome da garota com a bola. Eu sei, não faz o menor sentido.
 
Nem eu, que gosto tanto de jogos, seria capaz de entender a lógica absurda daquelas gincanas. Ou entender por que aquelas criaturas participavam tão animadas de atividades que mais pareciam formas de punição inflingidas pelo deus Sílvio.
 
Mas nem tudo eram jogos.
 
Foi curioso observar que, naquele planeta, algumas criaturas não moviam a boca em sincronia com o que falavam. Essas eram, geralmente, as criaturas mais vingativas e sempre envolvidas em relações muito dramáticas. Algumas, como a chamada Paola Bracho, eram representadas vivendo em lugares muito luxuosos, contrariando a noção de que era um planeta pobre. Ou talvez mostrasse que apenas algumas criaturas tinham acesso aos recursos do planeta, o que, por si só, já demonstrava que era uma civilização muito rudimentar.
 
Por outro lado, o povo simples aparecia representado em uma vila com condições tão precárias que uma das criaturas morava dentro de um barril. Me comoveu elas viverem em miséria tal que tantos de seus móveis fossem de isopor, que se quebrava facilmente, geralmente na cabeça de outra criatura. 
 
Elas viviam brigando e trocando tapas bem sonoros, e nem as crianças escapavam da violência. Mas o que eu realmente nunca vou entender é por que raios as crianças daquela “vila” eram, na verdade, adultos fantasiados de crianças. E todos realmente pareciam acreditar que elas eram crianças! Aquelas criaturas enormes, céus, até eu percebi a diferença.
 
Pelo menos, eles tinham um herói para defende-los sempre que alguém clamasse por ajuda. Munido de uma marreta biônica, uma ferramenta que já vi ser usada por outras civilizações intergalácticas como instrumento musical, o tal Chapolin combatia malfeitores, embora fosse tão inteligente quanto a sujeira da minha mesa de trabalho.

era só gritar "ó, e agora quem poderá me defender" que ele aparecia
 
Foi também um dos únicos momentos em que percebi, naqueles sinais, algum interesse por outros tipos de vida no Universo: quando Chapolin vai parar em outro planeta, ou quando encontra um disco voador contendo um filhote jupiteriano, ou quando ele vaga pelo espaço em uma aeronave de brinquedo, enquanto canta “eu queria uma vez, por um minuto, visitar o infinito! E num planeta pousar por um minuto, e a nossa origem encontrar! Que sonho, que sonho, que sonho!”.
 
Fiquei um bom tempo assistindo àqueles sinais. Converti o tempo e calculei que se passaram algumas décadas no planeta que estava emitindo os sinais, mas pouca coisa mudou. Chaves e Chapolin (suspeito que sejam gêmeos, porque são incrivelmente parecidos) continuaram uma constante durante todo esse tempo, indicando que eles eram tão valorizados quanto dinheiro, barras de ouro, ou casa própria – os outros valores mais repetidos por ali.
 
Admito que eram as partes mais agradáveis e conseguiam me distrair de uma forma leve, mesmo que eu já tivesse visto tantas vezes as mesmas histórias. Talvez porque elas tivessem um poder hipnótico? Aí faria algum sentido que isso fosse transmitido tantas vezes ao decorrer dos anos, como uma forma do deus Sílvio controlar as mentes das criaturas daquele planeta ou de outros que entrassem em contato com o conteúdo. Anotei no relatório.
 
Aprendi um bocado de coisas sobre aquele planeta, é verdade. Aprendi que se você se sentar por muito tempo num banco de praça, vão aparecer criaturas muito esquisitas para te interromper com piadas agressivas. Aprendi que orfanatos são lugares muito felizes e que as órfãs resolvem todas as situações cantando e dançando. Aprendi que crianças são seres com capacidade de hackear a programação de uma emissora e de emitir seus próprios sinais para transmitir desenhos animados.

não sei explicar
 
Aprendi que naquele planeta não é estranho um adulto cantar “meu pintinho amarelinho, cabe aqui na minha mão”, imitando movimentos de asas com os braços. Aprendi que eles adoram e acham natural ver imagens fortes de acidentes, deformações e violência. Aprendi que testes de paternidade são grandes eventos e que a revelação do pai de uma criança é celebrada com distribuição de sapatadas e tabefes ao vivo.
 
Uma espécie com uma intrigante, surpreendente e embasbacante falta de sentido. Somente por sorte ou por puro acidente aquele sinal conseguiu atravessar uma distância tão absurda, sair da zona π.765 e chegar até nós. Esse feito vindo de uma espécie que aprecia jogos em que criaturas numa piscina tiram a roupa para vestir a roupa da outra no menor tempo possível, digamos que é até um milagre.
 
Enviei uma mensagem para os colegas do departamento perguntando se alguém tinha captado algum outro sinal vindo daquele perímetro. Assisti mais um pouco de Chapolin até chegar a resposta. Nada. Aquilo significava que eu dispunha apenas daquele sinal para julgar se aquela era uma área que merecia ser estudada com atenção.
 
Pensei nas imagens que vi todo aquele tempo. Nos pompons sendo balançados. Na alegria daquelas criaturas. Na expectativa por um prêmio. Nas risadas quando alguém se dava mal numa pegadinha. No Pedro de Lara. Nos palcos sempre cheios de gente. Nas dançarinas se equilibrando em taças gigantes. No boneco falante em forma de rato de bigode. Em todas as coisas coloridas, brilhantes e sempre em ritmo de festa.
 
Se o planeta que conheci como SBT só tinha aqueles sinais para enviar, não devia estar preparado para conversar com outras formas de vida. Estavam ocupados demais com as reprises de Chaves e do tal Maluco no Pedaço ou olhando para o resultado das roletas que lhe prometiam valiosos prêmios.
 
Então não, não valia a pena. Deletei o sinal dos equipamentos, para as antenas ficarem livres para sinais de planetas onde a vida tivesse evoluído um pouco mais. 

não foi dessa vez, Sílvio
 
Na verdade, só fiquei tanto tempo analisando o sinal por pura curiosidade mórbida e também um pouco de tédio. Nos primeiros momentos já deu para perceber que um contato com aquela espécie não levaria a lugar nenhum.
 
Pelo menos isso eu posso dizer: suspeitei desde o princípio. 
Rádio Imaginária

A Rádio Imaginária não existe. Mas se existisse, seria a nova seção do meu blog, com histórias narradas em áudio. No primeiro episódio, entro na pele de uma baleia para contar uma história escrita originalmente para esta gloriosa newsletter. Então clica aqui, prepare os fones de ouvido e dá o play!
Conselhos da Dona Mexerica
 
“Enfrentar uma situação que te apavora é igual pedir um lanche do McDonald’s. Na foto é de um tamanho, mas, quando você vai ver, é muito menor do que você pensava. Metade do tamanho de uma situação ameaçadora foi sua imaginação que criou. Se você corta essa metade, a ameaça vira o que ela realmente é: um desafio.” 

* Dona Mexerica é uma senhora que adora novelas, biscoitinhos de leite e pessoas que respondem e-mails. Numa realidade alternativa, ela é a gata idosa e laranjada de uma amiga.

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Esta edição da newsletter foi uma experiência de novas formas de mostrar meu conteúdo para você. Assim como foi a edição #74. E a #73. E todas antes delas.
 
O que mais gosto em fazer Bobagens Imperdíveis é poder pirar na pergunta “o que eu faço nesta edição?” e não ter absolutamente certeza de nada. Aqui é o meu laboratório.
 
Mais ou menos como um Sílvio Santos que se permite mudar a grade da programação sem avisar o público e colocar o que ele gosta porque ele pode. Porque sim. E agora eu entendo ele (fora a parte da riqueza, óbvio): esse negócio de fazer o que dá na veneta é realmente muito bom.
 
Depois me diz o que achou da Rádio Imaginária e quais histórias eu já escrevi você gostaria de ouvir nesse formato. Como editar (apesar de gostoso) dá um trabalhinho, não vou prometer periodicidade. Mas antes do que você imagina vai ter episódio novo. Semanalmente? Quinzenalmente? Uma vez por mês? Toda vez que a sonda New Horizons passar por um novo planeta? Só o tempo irá dizer.

 
Enquanto isso, obrigada por me acompanhar nessas experiências e até a próxima edição!
 
Beijos que valem mais do que dinheiro,
 
Aline. 
 
 
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