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Enxergando as lacunas.
Bobagens Imperdíveis

Bobagens Imperdíveis Ano 3 Edição 119
percepção / gente / vida

O que não está lá

 
Foi em “A Amiga Genial”, de Elena Ferrante, que li sobre isso. Uma das personagens vez ou outra enxergava as pessoas distorcidas, como que fora de suas margens, dissolvidas, revelando a verdade assustadora contida em suas naturezas. Desmarginação, ela chamava.

Devo ter ficado impressionada. Porque comecei a ver algo parecido, como quem ganha um poder X-Men de um dia para o outro, mesmo que eu saiba que poderes mutantes não funcionam exatamente assim.

Não as via transbordando para fora de seus contornos, desfiguradas, como no livro; mas as via parcialmente vazias, esburacadas, com algo faltando. Comecei a ver, em forma de vazio, as partes que elas escondiam do mundo.

•••

Quando a luz acabava, era costume brincarmos de projetar sombras na parede, nosso pai ensinando como posicionar os dedinhos para fazer um lobo, um coelho, o lobo comendo o coelho, um demônio. Precisava ser assustador, claro.

Era incrível como o contorno dos nossos dedos na parede deixavam de ser dedos para se transformar em outra coisa. No que quiséssemos.

A sombra foi a primeira forma de representação humana. Imagino nossos ancestrais dançando em frente ao fogo que faziam dentro das cavernas, impressionados com as dimensões gigantescas e distorcidas que seus corpos assumiam nas paredes.

Ali, pela primeira vez, tivemos o poder de controlar a nossa imagem. Nossa figura teria exatamente os contornos que definíssemos para ela, posicionando o braço assim, ou a perna daquele outro jeito; ou ainda ficando mais perto ou mais longe da fonte de luz.

Continuamos criando sombras. E como não? Estamos cercados de fontes luminosas, ainda que sejam telas frias, que emitem apenas luz, nada de calor. Não queremos correr o risco de nos queimar com a proximidade.

•••

Existe um mundo invertido – foi o que constatei dotada de minha nova visão além do alcance. Um mundo onde pessoas podem ficar perdidas e presas, e de repente invisíveis para nós, aqui no chamado “mundo real”. Não pessoas inteiras, como garotos de repente abduzidos para uma outra dimensão, mas parte delas. 

Há uma parte de cada um de nós nesse mundo invertido.

É invertido também na lógica: apesar de ser completamente escuro, é de lá que criamos as projeções que aparecem no mundo mais iluminado. Aqui, no mundo visível, somos as sombras projetadas de uma dimensão invisível. Porque é a partir do negativo que se revela uma foto.

Uma coisa a respeito de dimensões que aprendi com Carl Sagan é que, ao representar um objeto de três dimensões numa superfície de duas dimensões, é inevitável a perda de informação. Um cubo desenhado em 2D fica achatado e distorcido, bem diferente de sua forma real. Faz parte do custo de ser projetado numa dimensão a menos.

No mundo invertido, somos tridimensionais; logo, ao nos projetarmos para o mundo visível, perdemos informação. Como as silhuetas dos coelhinhos que fazemos com os dedos, é exatamente a imagem que queremos formar, mas é impossível ver seu avesso – e, do outro lado, não há coelho, apenas uma mão.

E é justamente isso que consegui ver: o que não está lá. A mão projetando a sombra. Vejo o que está faltando no contorno da pessoa, porque não pertence a esta dimensão; porque ela escondeu em outra.

Um vazio flutuando onde deveria haver um pedaço de seu rosto, ou um naco da sua perna, ou uma mecha de cabelo chuviscando, como se fora do ar.

Algo que não está lá quando ela posta coraçõezinhos nas redes sociais; algo que ela não disse para poder soar mais fofa; algo que ela deixou de fora da foto. Como eu não notei isso antes? Tão evidente. Tão na minha cara o tempo todo.

Criação é destruição. Para criar uma coisa, é preciso destruir outra.

Estamos criando imagens de nós mesmos, na vida ou em telinhas, criando ficções do que gostaríamos de ser, do que achamos que vai ser melhor aceito, do que vai fazer com que nos admirem, com que nos acolham e nos amem e nos rendam mais likes. Algo acaba sendo destruído no processo, mas o quê?

•••

Nada mais apavorante do que olhar para uma pessoa perfeita.

A pessoa que diz as coisas certas, que é sempre gentil e cheia de amor e bom gosto. Nem a vírgula erra. Está sempre apresentável, desenvolta, sorriso em dia. Tenho medo porque essa pessoa boazinha e correta é uma projeção.

Ela, assim como eu e você, também tem um lado sombrio, imperfeito, ou até monstruoso. E para aparecer só o melhor, imagine quanta coisa ela não deixou presa no mundo invertido.

Se você olhar com bastante atenção, é essa a pessoa mais cheia de buracos; que é quase apenas seu próprio contorno. Ninguém é completo sem um pouco de seu Demogorgon interior.

E o problema é que o monstro, preso nessa outra dimensão, jamais confrontado pela luz do dia, só vai ficando maior. Não há geringonça de Caça-Fantasmas capaz de aprisioná-lo quando ele cresce o suficiente para rasgar o véu da realidade. Porque uma hora ele irrompe e se revela. Não tem jeito.

Eu já vi isso acontecer algumas vezes. Foi bem assustador.

Mesmo sabendo que aquilo não era toda a pessoa, mas apenas sua imagem projetada, o barulho que faz uma projeção quando se quebra é um troço apavorante. 

É a sensação de estar vendo algo que eu não deveria. Afinal, manter as coisas ocultas em nosso mundo invertido particular não é tarefa fácil.

Foto da personagem Eleven, de Stranger Things: uma garotinha de cabelo raspado, com o nariz sangrando e um olhar ameaçador de quem está fazendo coisas com a mente

Se o coelho projetado na parede pudesse transcender a segunda dimensão e ver que, na verdade, ele é uma mão, como se sentiria?

Talvez o mesmo que nós, quando temos a coragem de olhar para as coisas que escondemos do mundo. Elas fogem ao nosso controle e talvez não sejam o que queremos mostrar com a nossa imagem; mas, gostando ou não, são elas que nos tornam tridimensionais.

 

Para pensar & ouvir & ler

Com licença, sereia passando

 
gif de uma sereia nadando em preto e branco, mas a imagem parece estar sofrendo uma interferência de várias cores


 

Valorizar o bom conteúdo


A grande mídia nos enche de propaganda e a gente ainda paga para ter acesso a ela; seja uma revista, seja jornais, sites ou mesmo a tv fechada. Mas faz bem mais sentido apoiarmos e financiarmos quem produz o conteúdo que a gente realmente gosta de consumir.

Não está fácil pra ninguém e arte nunca é prioridade. Por isso eu faço questão de, sempre que possível, apoiar artistas e projetos independentes, mesmo eu estando sempre no aperto, mesmo eu sendo tão quebrada quanto eles.

Como diria Amanda Palmer, “the gift must always move”. E, como lembrado pelo Rogério Bettoni: “a prosperidade depende do fluxo. O aperto é o melhor momento de ajudar.” 

Então, se você valoriza o trabalho de artistas, não deixe de apoiar.

Se eu sou uma dessas pessoas que cria e produz o que você gosta de ler, você pode deixar o seu gesto de que valoriza esse trabalho deixando uma doação no meu chapéu. Com R$ 10 ou R$ 20 por mês, você já estará me ajudando a escrever mais e melhor. Obrigada!


gif da parede de Stranger Things, onde foram pintadas as letras do alfabeto embaixo de cada lâmpada de um pisca-pisca. A ordem das luzes se acendendo formam a seguinte frase: PAGUE A AUTORA
mensagem do mundo invertido
 

Pergunta importante


Quero uma sugestão sua. Qual personagem, qualquer personagem, de desenho animado, livro, HQ, filme ou seriado, você gostaria de me ver desenhando?
 


Resumo da semana


Pouca escrita e muito trabalho, que ao contrário do que muita gente idealiza, trabalhar como escritora não é só sentar e dedilhar ficção no teclado do computador. Fiquei submersa em planilhas, custos, cálculos, prazos.

Também gravei e editei vídeos. Gravando, veio aquela sensação de que não sirvo pra esse negócio de falar com a câmera. Editando (não a minha cara, outra coisa), fiquei empolgada em estar contando uma história sem precisar digitar uma palavra sequer.

Fiz o melhor angu com couve refogada, carne moída e mandioquinha da história. Mas comi sozinha e agora a humanidade jamais saberá que gosto teve. Lamento.

Veio a vontade de resetar tudo. Zerar redes sociais, blog, tudo. Mudar de nome e de profissão. Virar jardineira. Joana Hortênsia, pensei. Seria um bom nome.

Aí vieram as novidades sociais da semana, o snap do Instagram e o Pokémon GO, dos quais não poderei participar por motivos de obsolescência do celular. Pokémon é um dos meus jogos favoritos de todos os tempos, mas tudo bem, eu nem queria mesmo.

Vou ficar aqui com meu Pokémon Picross, preenchendo quadradinhos com a LÓGICA, formando desenhos em 8 bit quase como uma senhorinha fazendo bordado em ponto cruz, para capturar os bichos da forma mais difícil já inventada.

Pelo menos capturei o Mew.

Também essa semana meu livro chegou a ficar em primeiro lugar na lista de mais vendidos de Ficção Científica & entre os 20 mais vendidos de todos os livros da Amazon Brasil. Mas não foi tão real quanto a dor do meu joelho, que esse frio só faz piorar.

Meu joelho, inchado, ficou maior que o sistema solar. Maior que o universo. Ele não deixou nada ser mais real que ele. Desde o acidente, tenho problemas com ele, vez ou outra isso acontece. Mas o que me aborrece mesmo é não poder fazer minha própria comida. Que falta me faz cozinhar.

É, vou ter que ficar de molho um tempo. 

Cuide dos seus joelhos. É bom lembrar que eles existem não só quando resolvem te abandonar.

Beijos estranhos,

Aline Valek

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