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Vamos desenhar?
Bobagens Imperdíveis

Bobagens Imperdíveis Ano 3 Edição 127
arte / vida / dicas

gif animado. duas mãos ilustradas se tocam e fazem surgir as cores em todo o desenho.

 
Antes da escrita, veio o desenho.

Há muito tempo, quando não existiam as letras, nem as palavras, nem as frases, nem os parágrafos e nem gente que os lesse, existiu o desenho. Os traços que riscávamos nas paredes de nossas cavernas contavam as histórias fantásticas do nosso mundo: caças e canções, gente e bisões, glória e destruição, vida e morte.

Tínhamos muito pouco; nem conforto, nem computadores, nem mesmo a garantia que sobreviveríamos ao dia seguinte, mas tínhamos o nosso traço para dizer: estou aqui. Vivo e vejo. Esta é minha voz.

Antes da escrita, veio o desenho.

No meu primeiro dia de aula no jardim de infância, antes de ser alfabetizada, a professora pediu que desenhássemos no papel o que havíamos feito nas férias. Eu nem sabia o que eram férias, nunca tinha viajado. Desenhei a primeira coisa que me veio à mente: um monstro com patas de caranguejo e rosto humano todo costurado.

Ninguém entendeu nada, mas a primeira história que contei foi um desenho – e tinha que ser de ficção especulativa.

Desde muito nova, eu já queria contar histórias. Não, não queria ser escritora. Nem pensava que um dia eu poderia escrever um livro. O que eu realmente queria era ser quadrinista.

A verdade é que eu nunca desenhei bem. Quem desenhava mesmo era meu irmão: sempre teve uma aptidão muito avançada para a idade dele e chegava a ser humilhante colocar os desenhos lado a lado, mesmo eu sendo mais velha. Também tinha um olhar bem crítico e apontava todos os defeitos do meu traço.

Aquilo me irritava, mas foi o melhor incentivo que pude ter, porque sou movida a sangue nos olhos. Comecei a estudar, comprei revistas “aprenda a desenhar” e pratiquei, pratiquei, pratiquei. Não superei meu irmão, mas pelo menos superei a ideia de que desenhar não era para mim. Até hoje não me considero uma ilustradora talentosa, sou no máximo esforçada.

Com o tempo, comecei a perceber que eu não queria desenhar, mas contar histórias – o que faço melhor escrevendo. Mas a ilustração continuou comigo.

Antes da escrita, veio o desenho.

Numa sala de aula do primário, toda a turma desenha. A professora entrega um papel em branco e os alunos desenham com gosto, mostram intimidade com as cores, não economizam traços, inventam formas, acrescentam mais um braço no personagem, por que não?

Não há a vergonha de não ser bom o suficiente, não há medo de errar.

Um dia, isso se perde para a maioria deles. Crescem e começam a acreditar que não têm talento – mas outro dia mesmo estavam desenhando robôs e unicórnios, figurinos e animais. Ué, onde foram parar todos aqueles desenhistas?

Conversando com uma artista plástica, perguntei há quanto tempo ela pintava. Ela respondeu: “desde pequena, como todo mundo.”

E ela estava certa! Porque a diferença entre uma pessoa que não “sabe” desenhar e uma ilustradora é basicamente essa: a ilustradora continuou a desenhar. É provável que também fosse uma dessas crianças com desenhos malucos ou medianos; mas, diferente de muitos de seus colegas, ela não parou. Estudou, praticou, buscou cada vez mais se aperfeiçoar.

O mesmo vale para a escrita: aprendemos todos a escrever e a contar histórias. O que diferencia uma pessoa não escritora de uma escritora profissional é isso: a prática sistemática, teimosa e contínua que faz o trabalho evoluir.

Mas me adianto: antes da escrita, veio o desenho.

Porque o ser humano é desenhista por natureza. Antes do Photoshop, das revistas “aprenda a desenhar”, das aulas de anatomia, dos pintores renascentistas, das aulas de artes do jardim de infância, da tinta aquarela, da caneta nanquim, já desenhávamos.

Antes da escrita, da prensa tipográfica, dos computadores e da internet, já contávamos histórias. É um talento humano.

Quando começamos esse grande jogo chamado vida, recebemos essas habilidades no pacote. Claro que precisamos desbloquear, um passo de cada vez, os níveis mais avançados; mas já temos dentro de nós tudo o que é necessário para começar.

Traço, palavra, som, imagem: somos naturalmente criaturas de linguagem e usamos todos os meios disponíveis como ferramentas de expressão. Foi esse impulso primordial e primitivo, essa vontade de nos comunicar e criar conexões, que nos impulsionou a dominar tantas artes diferentes.

Antes da escrita, veio o desenho. E, antes de tudo, veio a nossa voz.

É para ela que estamos olhando quando encaramos o nosso traço. Incomoda descobrir a própria voz. Parece um ruído, parece bagunçada, não é como a das outras pessoas, que estamos acostumadas a ouvir. Dá vergonha, não queremos tentar de novo colocá-la no papel; se tentamos, não queremos publicar, mostrar para o mundo. E se ela for rejeitada? E se não for boa o bastante?

No começo, ela realmente soa estranha, desajeitada, ridícula. Mas quanto mais se treina, mais nítida ela fica. Ganha definição, contorno, volume. Mesmo nas imperfeições, vai revelando quem somos.

“Encontramos o nosso estilo quando não sabemos fazer as coisas de outra maneira”, já me disseram uma vez. E às vezes é preciso procurar uma vida inteira, experimentando, praticando e fazendo, para encontrar a nossa voz – ou todos os aspectos que ela pode assumir.

Antes da escrita, veio o desenho.

Em ambos está a nossa voz.

E a grande pergunta: afinal, o que ela nos diz?

 

Meus dois tostões
sobre desenho


gif animado. uma mulher feita de traços que se movem faz cara de brava e pergunta: WHAT?

:: Aprender a desenhar é aprender a observar. Mas isso vai além de apenas ver: é sentir a textura do mundo, sua profundidade, contornos e cores.

:: Referências são tudo, e jamais deve-se envergonhar de precisar delas. Mesmo que eu saiba como é uma mão, não tem problema eu tirar foto da minha para me ajudar num desenho. Ou pegar numa foto referência para um cabelo, em outra referência para o nariz, em outra, referência para pernas, e misturar tudo para criar algo novo. Isso acontece o tempo inteiro, não importa o quão experiente seja o desenhista.

:: Quanto mais se treina e se armazena referências no cérebro, mais fácil fica desenhar “de cabeça”. Não é como se alguém que desenha apenas olhando para o papel, sem copiar de lugar algum, esteja tirando a ilustração do nada: está, na verdade, recorrendo ao acervo mental de referências. É a mesma coisa que usar uma foto como referência ao lado enquanto desenha, a diferença é só que a referência, no caso, vai estar grudada no cérebro.

:: O desenho será sempre uma cópia de uma referência, seja uma imagem, uma sensação ou uma ideia que trazemos na cabeça. Quanto mais detalhes eu conseguir visualizar com a mente, mais fácil fica passar isso para o papel. O desenho começa na mente.

:: Coordenação motora é uma das coisas menos importantes para conseguir desenhar, e uma das desculpas mais usadas por quem não quer nem tentar.

:: Aquarela é uma ótima professora para ensinar a aceitar que o erro faz parte do processo. E muitas vezes fica bonito!

:: Grande parte dos problemas numa ilustração evita-se com um esboço bem-resolvido. É pensar um pouquinho na estrutura da casa antes de querer pintar as paredes e colocar móveis.

:: Quanto mais próximo do original for a referência, mais riqueza de detalhes se tem para desenhar. O desenho ou a foto de uma flor são apenas representações de uma flor; se eu usar a própria flor como referência para o desenho, mais informações vou ter para trabalhar e mais da minha própria perspectiva vou poder colocar.

:: Não acredite em cagação de regra. Desenhe.

 

Um pouco do
meu Inktober


Ainda não acabou, mas a experiência de fazer um desenho por dia, durante o mês de Outubro, está sendo ótima. Foi maravilhoso ter esse impulso para voltar a desenhar.

Aquarelas: um mural com três desenhos. 1) Uma mulher com cabeça de lhama e o texto: "ninguém precisa ser bonita para ter autorização para existir" 2) a guerreira Dandara de Palmares envolta em fumaça mágica, com o texto "Dandara vive" 3) Amanda Palmer nua, tocando seu ukulele e o texto: "ukulele banish evil, ukulele save the people"
Caloar: mural com três ilustras. 1) Uma moça com a blusa aberta na frente do ventilador 2) uma nadadora de maiô, mergulhando no azul de uma piscina 3) uma garota ruiva só de shortinho, bebendo água de côco, com o texto "hidrate-se"
História sem fim: mural com 1 ilustra e 2 aquarelas. 1) o dragão da sorte do filme com os dizeres: "ter sorte é o que basta" 2) a criança imperatriz, sentada no trono de concha, com os dizeres "dê-me um novo nome" 3) a feiticeira Xhayíde, fumando seu cachimbo de serpente, envolta em fumaça vermelha, com os dizeres "dê-me seus desejos"
Dancinhas: mural com 3 ilustras. 1) a menininha do clipe da Sia, rodopiando de costas e alongando a perna até a cabeça; 2) uma moça de patins sensualizando 3) um rapaz com roupas de street dance fazendo seus movimentos de dança
Mulézinhas: mural com três ilustras. 1) She-Hulk segurando um gibi com os dizeres "se você não comprar minhas histórias vou rasgar todos os seus gibis dos X-Men" 2) uma japonesa de cabelinho chanel comendo harumaki de hashi 3) uma moça com pinturas indígenas, de costas, mostrando sua longa trança verde
Euzinha: mural com 1 ilustra e duas aquarelas 1) Aline criança segurando a enorme boneca Xuxa que ganhou pelo pescoço, como se a tivesse enforcando 2) desenho das coisas sobre a minha mesa: um jogo de Pokémon, um caderno com a palavra "coragem", meu Kobo, uma caneca com a cara da Marcelinne de Hora de Aventura e um caderno com Batgirl e Mulher-Maravilha na capa 3) autorretrato em que, descabelada, seguro uma caneca de café usando uma lamentável roupa velha, calça de pijama e robe de pelúcia por cima.

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Agradecimentos ao Marcos Felipe por ter me emprestado suas canetas coloridas que usei durante o mês todinho ♥︎

 

Dez ilustradoras
do coração


:: Ana Luiza Koehler, que tem um puta domínio da aquarela, desenha corpos e rostos super expressivos, além de ilustrar com maestria cenários arquitetônicos.

:: Caroline Jamhour cria ilustrações saídas de um mundo tão mágico quanto obscuro; também é tatuadora.

:: Eva Uviedo: adoro as ilustrações com temáticas do oceano e sua representação da figura feminina é inconfundível, seja no papel ou num prato de porcelana.

:: Giovana Medeiros tem um traço fofo, delicado e super versátil, que combina com ilustras coloridíssimas ou feitas a nanquim, e também com quadrinhos.

:: Mag Magrela é a artista responsável por meus grafites favoritos na Vila Madalena: desde índias a mulheres entrelaçadas, seu trabalho espalha sensibilidade nas ruas.

:: Margaux Motin é autora da HQ “Placas Tectônicas”, que me deixou apaixonada pela história e pela variedade de roupinhas que ela ilustra, ótimas para usar de referência em desenhos.

:: Noelle Stevenson, ou Ginger Haze, é uma das maiores referências para mim, especialmente por fazer desenhos tão simples de forma tão expressiva.

:: Paulina Ganucheau: moças estilosas e com poderes estelares é com ela mesma. Muito cor de rosa, azul bebê, Sailor Moon e fofuras. Quadrinhos? Ela também faz.

:: Sirlanney publica na internet seus quadrinhos sobre desilusões amorosas, putarias e angústias, em desenhos tão sinceros quanto suas histórias.

:: Vicki Sigh desenha moças lindíssimas e fofas. Chama a atenção a suavidade, a escolha sempre tão agradável de cores, e a diversidade dos corpos que ela ilustra.

gif animado. uma moça de vestido levantado, abaixando a calcinha. de dentro da sua bunda saem borboletas e flores <3
arte da Sirlanney
 


Indicação de HQ

 
Imagem da capa do livro Nimona, com a personagem no centro (com asas de dragão), o vilão Ballister e o herói Ouropelvis

A HQ “Nimona”, recém-publicada no Brasil, é de autoria da Noelle Stevenson, uma das minhas ilustradoras favoritas, como você deve ter percebido pela lista acima. 

O universo de Nimona é uma mistura doida de mundo medieval de campanha de RPG com sociedade moderna capitalista, onde não é nada estranho que o aparecimento de um dragão numa vila de camponeses seja noticiado por repórteres na TV, ou que cavaleiros usem armaduras de batalhas e armas de raio laser.

No meio dessa interessante farofa narrativa está Nimona, uma garota rebelde e atrevida que é também uma metamorfa. Ou seja, ela simplesmente tem o poder de se transformar no que ela quiser. Num tubarão, num dragão, num molequinho, num gato, na sua mãe.

A história começa com Nimona se oferecendo para ser assistente de Ballister Coração-Negro, o maior vilão desse mundo, mas que é um cara até bastante ético… e com pensamento super científico! Logo me apaixonei por esse personagem.

É muito bacana como, apesar da história apresentar o modelo de heroísmo versus vilanismo, consegue mostrar personagens cheios de nuances e com histórias comoventes que vão sendo aprofundadas.

Por exemplo, a relação de Ballister com o herói Ouropelvis (que nome!) começa com uma rivalidade aparentemente gratuita, até revelar que os dois eram super amigos e que, na verdade, ainda se gostam muito. A capacidade de nos importarmos com os outros e fortalecermos esses laços que criamos, aliás, é um dos cernes da história.

“Nimona” é um bom exemplo de como um traço simples, como o de Noelle, pode transmitir tanta expressão, uma história tão inteligente e humana e, sobretudo, ser um veículo onde se possa ver tão claramente a voz da artista.

Ilustração de Nimona criança, com longos cabelos ruivos e pose indefesa; ao lado, Nimona jovem, cabelos raspados atrás, ainda ruiva, roupitcha medieval e pose desafiadora.

•••

Os dias por aqui tem sido difíceis, mas tenho conseguido dar andamento ao novo romance que estou escrevendo. A ficção ainda é um lugar possível de se habitar. Fora dela, bem, é isso aí que você já sabe.

Posso sumir um poquinho, mas não vou desaparecer! Combinado?

Depois me conta suas novidades, o que tem desenhado, se viu algum projeto legal. Meu e-mail estará de portas abertas para você.

Quando você menos esperar, estarei de volta :)

Beijos desenhistas,

Aline.

Aline Valek

Nas edições passadas


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