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Uma mulher. Escrevendo. Seus problemas. E mudando a internet brasileira.
Ano 4, edição 66


Essa é a época do ano em que eu compro muitos cadernos, calendários, agendas, planners e etc. Mesmo já tendo várias dessas coisas em casa, mesmo que muitas delas acabem vazias e perdendo a serventia no ano seguinte.

Na manhã do segundo turno das eleições eu comprei um planner que tinha um "my best friend" escrito na capa. Eu estava no aeroporto de Congonhas, esperando meu vôo de volta pra Belo Horizonte pra poder votar. Eu precisava daquele planner pra colocar um pouco de ordem na minha vida, ainda que uma promessa de ordem.

Porque ter vários objetos de papel com o ano seguinte escrito me dá esperança de que esse ano realmente vai chegar, e coisas normais vão acontecer. É uma esperança de que a vida vai mesmo seguir.

Ontem eu comprei uma agenda que eu provavelmente não vou usar além das primeiras páginas, como todas as outras agendas que já tive. Ela era alemã, mas feita, sei lá, pra circular em vários países, e os nomes dos meses e dias e eventos apareciam em quatro línguas diferentes.

É parte dessa minha esperança de um dia finalmente aprender alemão, como tentei esse ano, mas meio que não rolou. Vamos ver se vira realidade ano que vem.

E antes que você pergunte se eu já tentei bullet journal, sim, tentei, duas vezes, fico louca naquelas páginas com pontinhos, mas acho que eu não mereço tanta liberdade.

Ontem eu também fui na minha neuro e paguei algumas centenas de reais pra ouvir que eu pareço muito bem, pra confirmar que eu realmente me sentia muito melhor, e pra fazer aqueles testes tipo desenho do Pica-pau, martelinho no joelho, dedos indicadores se alternando no nariz. Você vai saber do que eu tô falando se precisar ir pra neuro algum dia.

A dor de cabeça que afundou boa parte do meu 2018 tinha quase sumido, e eu realmente achei que só coisas boas me aconteceriam nesse mês de dezembro, que é o primeiro dezembro desde 2016 que eu não passo deprimida. Um beijo pra indústria farmacêutica e um especial pros 2 comprimidos de desvenlaflaxina 50 mg que eu tomo todo dia.

Mas hoje já tava tudo meio merda de novo, esqueci de dormir com a minha placa de bruxismo, esqueci de comprar o relaxante muscular que mantém tudo em mim relaxado  na marra e acertei a cabeça na quina de um armário com muita força. Bem na parte que costuma doer mais.

Ontem minha neuro tinha colocado na minha receita o dobro da dose de tramadol (o analgésico opióide que eu tomo) e eu não corrigi porque olha, tem dia em que a gente só precisa mesmo encher a cara de droga. E esse dia foi hoje.

Vai ser a primeira carinha triste do mês no aplicativo que eu uso pra registrar meu humor.

Daqui a uma semana eu e Lucas vamos estar arrastando nossas malas nos aeroportos da vida pra finalmente conhecer a França, justificando tudo o que pagamos até hoje pra estudar na Aliança Francesa.

Vamos passar 15 dias rodando, primeiro Paris, depois Strasbourg, e aí Natal na casa de uma amiga em Lyon, daí mais embaixo pra Avignon, Aix-en-Provance, Nice, Marselha, Mônaco, um monte de praias e aí de volta pra Paris dia 31 pra passar a virada e voltar pro Brasil bem cedinho no dia primeiro, porque quanto maior o sofrimento mais barata a passagem.

Será que as roupas que eu tenho dão conta do frio? Será que eu vou ter crise de dor por ficar muito tempo em pé em alguma fila mesmo comprando ingressos com antecedência? Será que algum dia eu vou ter uma opinião formada sobre os tais protestos dos Coletes Amarelos? Será que nossos anfitriões dos Air Bnbs são legais e não eleitores da Le Pen?

Eu sempre surto na semana anterior a alguma viagem porque fico pensando nas milhares de coisas que podem dar errado, e às vezes acabam dando mesmo, e eu sinto muita culpa por ter gastado tanto dinheiro pra não conseguir curtir tudo.

E olha, como é cara a menina Paris, nem te conto.

Ter ansiedade é uma bosta, já me fez desistir de um passeio que eu queria bastante fazer, que é o das catacumbas. Eu pensei melhor e vi que passaria muita vergonha tendo uma crise de pânico/claustrofobia debaixo da terra e ainda precisando subir vários lances de escada pra respirar ar puro de novo.

E eu também não colaboro porque ao invés de ver vídeos fofinhos de youtubers viajeiros eu fiquei assistindo a chegada dos nazistas a Paris em 1940. E fiquei me perguntando se Hitler pagou ou não pra entrar no negócio lá que tem os restos mortais do Napoleão.

A gente leu Maus no nosso clube do livro como parte do nosso projeto antifascista. Começamos quando o presidente eleito ainda era só uma ameaça de ser eleito e já lemos também O Rinoceronte, de Ionesco. Pra janeiro já temos marcado Pedagogia do Oprimido, antes que criminalizem de vez Paulo Freire.

Ah, e se você não leu Mauss ainda leia demais, porque é lindo, triste, verdadeiro, e é uma graphic novel sobre Holocausto em que os judeus são ratos, nazistas são gatos, filhos sentem culpa, e sobreviver pode ser uma prisão sem fim.

Eu já estou muito cansada de discutir política, mas no clube do livro eu me sinto tão amparada, tão entre iguais, que até o futuro mais sombrio parece suportável. E eu nem tinha pensado nessa função quando criei o clube lá em 2014.

Eu não sei se vou conseguir ficar acordada até a meia noite do dia 31 pra fazer a piada de que na França já é 1964. Ou estando lá em meio aos protestos deveria ser 1968?

Vai ser mais um aniversário de morte da minha mãe, doze anos, nem é uma data redondinha nem nada, mas sei lá, às vezes eu fico atordoada de perceber quanto tempo já passou. 

Eu nunca conversei com meus pais por whatsapp, eles nunca se preocuparam de verdade com a volta da extrema-direita ao governo do Brasil. Eles estão presos pra sempre em outro mundo, ainda que fisicamente meu pai ainda esteja presente nesse.

Faz tempo que eu não visito meu pai, mas a dona da casa de repouso sempre me manda vídeos, fotos e dá um resumão de como têm sido os dias dele, sempre tão idênticos, mas bem tranquilos também.

Em 2018 eu resolvi largar a Letras pra descansar mais e me estressar menos. Mas aí resolvi fazer Enem pra cursar Filosofia, e não sei se realmente vou querer cursar, porque as faculdades públicas me parecem péssimos lugares pra se estar em 2019. Ou sei lá, ótimos lugares, dependendo do ponto de vista.

Eu queria que 2019 chegasse logo pra eu poder usar toda a minha papelada de papelaria, mas eu também sinto muito medo. Hoje em dia se passa na rua um eleitor lá do presidente eleito eu mudo de calçada, mas eu não vou conseguir fazer isso por vários anos. 

Eu fico construindo pra mim mesma essa narrativa de que a doença do meu pai e as filhas da putagem da minha família me deixaram mais forte, mas o que eu realmente sinto é que eu fiquei mais fraca. Será que em outras épocas meu coração iria disparar tanto com certos discursos? Será que eu teria insônia depois de masoquisticamente assistir a booktuber famosa enaltecer o guru das pessoas que estão no poder?

Em 2019 eu preciso encontrar mais as pessoas que me fazem bem, mesmo que seja difícil acertar a agenda, mesmo que elas morem meio longe. 

Eu preciso começar a aprender alemão, porque dizem que só se filosofa direito em alemão. O que eu sei que não é verdade, porque meu filósofo favorito é francês, mas ainda assim.

Eu queria fazer mais programas sozinha, viajar sozinha, ir pra baladas sozinha, porque fiz um pouco dessas coisas em 2018 e isso me deixou feliz demais. E justo eu que tinha tanto medo de me faltarem pessoas.

Eu queria ser uma pessoa melhor pras outras pessoas.

Queria aprender direito o que é fascismo, porque eu só achava que sabia, mas parece que é uma coisa fácil de entender e difícil de explicar.

Queria dar a louca em janeiro e tirar dessa casa tudo o que não tem serventia, doar, jogar fora, o que ocorrer. Queria voltar a ser a aprendiz de minimalista que eu ameaçava ser no começo do ano.

Queria produzir menos lixo, porque me faz sentir melhor. E se é um esforço muito gotinha no oceano pra salvar o mundo, ele pelo menos me faz carregar menos sacos pesados e fedorentos lá pra lixeira do prédio.

Eu queria que essa passagem de um ano pra outro representasse realmente uma mudança, e não só uma convenção de contagem do tempo.

Eu controlo o tempo do meu passado lendo meus diários, controlo o do futuro com as agendas, mas a moça que eu sou no presente: que compaixão eu posso ter por ela?

Qual você teria? Me conta aí respondendo a essa newsletter.

Pensar que a vida é feita de processos cíclicos me dá uma certa paz, me faz lembrar que o mal não dura sempre, e que ainda que a gente sofra, existem outras épocas que são felicidade.

Por isso eu vou encerrar essa newsletter com um trecho da tchan tchan tchan tchan Bíblia.

Eu sei que você pode estar com ódio dela, e não tiro a sua razão, já que a nossa nova Constituição deve vir do Levítico.

Mas mesmo pra mim que sou ateia a bíblia é um livro de uma importância incrível, é o testemunho de como um povo pode se manter unido e sobreviver através das histórias que conta. E haja cativeiro e diáspora pra essa galera.

Esse aí é o iniciozinho do Eclesiastes capítulo 3


Tudo tem o seu tempo determinado, e há tempo para todo o propósito debaixo do céu.
Há tempo de nascer, e tempo de morrer; tempo de plantar, e tempo de arrancar o que se plantou;
Tempo de matar, e tempo de curar; tempo de derrubar, e tempo de edificar;
Tempo de chorar, e tempo de rir; tempo de prantear, e tempo de dançar;
Tempo de espalhar pedras, e tempo de ajuntar pedras; tempo de abraçar, e tempo de afastar-se de abraçar;
Tempo de buscar, e tempo de perder; tempo de guardar, e tempo de lançar fora;
Tempo de rasgar, e tempo de coser; tempo de estar calado, e tempo de falar;
Tempo de amar, e tempo de odiar; tempo de guerra, e tempo de paz.


Agora ouça com a letra em inglês cantada pelo The Birds. A música se chama Turn Tunn Turn.

E que em 2019 a gente possa ter muito tempo pra dançar depois de todo esse tempo pranteando.

Ah, e não se esqueça que você é importante demais pra mim, viu? Se não, pra quem eu escreveria tanta coisa que acabou me deixando melhor enquanto eu escrevia?

Um beijo grande, e até 2019!

















 
Essa aí da foto é Camila, que sou eu.
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