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Bom dia!

Na sexta-feira, falei sobre curiosidade, criatividade e empatia no Festival da Empatia, contando inclusive a história de como nasceu o Ninho de Escritores e quais são os valores que sustentam a sua prática hoje em dia. Caso você queira, pode assistir à minha palestra no YouTube.

Hoje é a quarta semana em que estou comentando as respostas que recebi ao exercício da lente da curiosidade. Caso você queira acessar as edições anteriores da newsletter e acompanhar esse exercício fabuloso que estamos fazendo, basta acessar nosso arquivo.

A proposta inicial foi:
Joana acordava todos os dias no mesmo horário.

O desafio era responder com:
  • uma versão modificada dessa frase; ou
  • mantenha essa frase intacta e acrescente uma segunda que aumente o nível de curiosidade do leitor.
A partir desse convite, um bom grupo de pessoas me enviaram respostas, as quais venho comentando. E vamos a elas!
Jane acordava todos os dias no mesmo horário, mas uma parte dela continuava a dormir. (João Francisco Maria)
Lendo esta frase, fico pensando em como as próximas palavras poderiam contribuir para aumentar o meu nível de curiosidade. Se eu descobrir algo misterioso sobre essa segunda parte, talvez, ou se Jane partisse numa aventura para despertar essa parte adormecida...

As possibilidades ainda são muitas e, como escritor, gosto de brincar com elas.
Joana acordava todos os dias no mesmo horário. Naquela segunda-feira cinzenta foi diferente, e ela despertou no meio da noite: seu maior medo tinha se tornado realidade. (Celso Fernando dos Santos)
Estas duas frases apresentam uma quebra (do hábito) e um mistério (que medo é esse?), uma combinação que funcionou para me deixar curioso sobre os próximos passos. Aqui estou ao mesmo tempo interessado em saber mais sobre Joana e em descobrir o que virá pela frente, algo que considero fabuloso!

Uma dúvida: por que a informação da segunda-feira cinzenta se ela acordou no meio da noite? Essa informação certamente pode ter valor para o contexto e para a narrativa, é claro, mas é algo que me perguntei enquanto lia.
O despertador toca as 6 horas da manhã, no mesmo horário que Joana acorda todos os dias. E como rotineiramente fazia, colocará o pé direito no chão antes do esquerdo. Mas naquele dia seus pés espantaram um passarinho que, meio perdido do seu ninho no jardim, passou por debaixo de sua porta ainda fechada. E ela ainda bocejando ignorou o sinal de que aquele dia seria diferente. (Lilian Ribeiro)
Eu tenho uma relação dúbia com a participação do narrador nas histórias. Às vezes eu acho um recurso apropriado, às vezes eu acho desgastado. Fora isso, aqui percebo que é o narrador que convida a curiosidade, me alertando que o dia será diferente do usual. Eu não me sinto muito tentado a acompanhar o dia desta Joana porque ainda não me importo com ela, não sei o que ela busca nem o que está em jogo.

Um cuidado importante em qualquer texto que produzimos é a constância do tempo verbal, para que possamos localizar os acontecimentos temporalmente. Neste trecho, tivemos alguns deslocamentos temporais que não acredito serem propositais, e isso poderia afastar leitores mais exigentes.
Ana acordou com o som  de diferentes alarmes,campainhas, toques... Tudo ao mesmo tempo. E pensou:" estou dormindo ainda com todo esse barulho. Ela está? (Celina Stateri)
Eu não sei o que está acontecendo neste trecho. Arrisco que Ana também não sabe, e isso para mim produziu um apreço gostoso. Costumo advogar em defesa da clareza em todos os textos, mas aprecio muitíssimo quando um texto constrói e traduz a emoção que busca representar. Se a personagem que estou acompanhando está confusa, eu leitor não preciso de clareza ainda, porque confusão é tudo menos clara, ao menos quando acompanhada de perto.

Isso inclusive funciona como um lembrete: às vezes certos sentimentos intensos, quando vistos de longe, parecem ser graça nem sentido. E se narrados de longe, provavelmente serão percebidos assim por quem ler.
Joana acordava sempre a mesma hora. Hoje o despertador cansou de tocar e ela nem se mexeu... (Flavia)
"Hoje o despertador cansou de tocar". Tive uma professora de escrita criativa que abominava essa antropomorfização de objetos, dando referências e ações humanas ao que usualmente não tem. Eu, por outro lado, aprecio a magia criativa necessária para pensar que um despertador pode se cansar de tocar.

Além da vida do despertador, fiquei me perguntando: ela nem se mexeu no horário, ou nunca mais? Será que a vida desperta de Joana dependia do despertador?
Joana lhe acordava todos os dias no mesmo horário. Ontem, o corpo frio na cama lhe roubou a rotina. (André Nascimento)
Eu adorei esse texto e já digo de início: quero saber mais. Fiquei um bom minuto aqui pensando que corpo frio poderia ser esse, se dela, se de outra pessoa, talvez de um affair da noite anterior... Relendo, percebi o primeiro "lhe", e fiquei um bocado confuso porque gramaticalmente ele não cabe ali. Seria o caso de um "o" ou "a"? Na minha leitura inicial, eu inconscientemente pulei o "lhe", criando os primeiros sentidos que me encantaram.

Quando eu for pra cama hoje, observarei a temperatura do meu corpo...
Por provável hereditariedade Joana começou a apresentar crises de ausência que desde manhã começavam a preocupá-la. (Pedro Luiz Cipolla)
Este texto é outro exemplo de um texto que não me deixa curioso para saber o que acontece a seguir, mas me deixa reflexivo. Adorei esse mistério curioso, "crises de ausência". O que são crises de ausência? Seriam crises de sentir falta de algo ou alguém, ou quem sabe crises durante as quais se ausentava, talvez da consciência ou mesmo de um espaço físico?

A linguagem tem esse poder: ao mesmo tempo em que nos permite concretizar histórias, também pode ser um convite para um abstrato intransponível!
De modo que, Joana acordava todos o dias no mesmo horário, Joana era apenas uma linha, uma forma desconhecida, sem cor, sem emoção. Quem era Joana, senão uma exercitação dela mesma, sem um pingo de originalidade? (Renan Barbosa)
Assim como às vezes perguntas podem estimular a curiosidade, elas também podem ser uma maneira diferente de colocar um ponto final após uma opinião de quem escreveu. Como no texto anterior, temos aqui uma exploração abstrata, e aqui até mesmo filosófica, sobre a "condição" de Joana. Não tenho curiosidade em saber o que se passa com ela, em parte porque ela é só uma linha sem um pingo de originalidade.

Creio ser possível apaixonar-se por e deliciar-se com algo absolutamente rotineiro, e existe aí um desafio de conseguir traduzir isso em texto. Talvez num futuro!
Assim finalizamos os exercícios da lente da curiosidade. Tenha uma excelente semana!

Tales do Ninho






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