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Bom dia!

Estou vivendo em quarentena no meu apartamento. Saio para poucas coisas, como ir ao mercado e colocar o lixo na rua. No sábado desci, senti o sol na pele e fui invadido por uma gratidão imensa por poder estar na rua tranquilo de manhã. Gratidão por essa coisa pequena que é poder experimentar o sol, gratidão por estar protegido em minha casa.

Essa é uma gratidão semelhante a que sinto agora, enquanto escrevo este e-mail (também sábado) e vejo que há diversas respostas para o desafio-convite que fiz na mensagem anterior.

Obrigado a todas as pessoas que ofereceram uma resposta ao convite, que foi o seguinte:
Reginaldo entrou na sala.

O exercício é reescrever essa frase, adicionando um detalhe original.
Caso você não tenha lido a mensagem anterior, na qual explico a lente do detalhe original, você pode acessá-la no arquivo das newsletters passadas.

Vamos agora às respostas!
Os dentões se desbocavam por cima do lábio inferior - grandes demais para sua idade, dizia o criador - quando Reginaldo entrou na sala onde guardava o corpo da mãe. (Aurel Lujan)
Quero começar lembrando que o desafio já não é mais sobre curiosidade – mas esse trecho me deixou curioso e instigado para ler mais!

Neste trecho, aprecio o uso do verbo desbocar, sobre o qual nunca dediquei muita reflexão. Sempre ouvi desbocado no contexto de quem fala impropérios, portanto achei criativo esse uso específico do verbo. Um dos seus sentidos, conforme o dicionário Priberam, é "despejar, vazar", então que coisa mais específica para vazar que não a própria boca?

Me pergunto quem é o criador e também se os dentões só se desbocavam em momentos específicos – por exemplo, quando Reginaldo entrou na sala.
Quando eu já estava prestes a sucumbir àquele sono da morte, Reginaldo entrou na sala. Não... Ele não entrou... Foi arremessado. (Ane Olliver)
Vocês gostam de curiosidade e surpresa, né? Essa é uma característica que observo em textos curtos escritos para a internet, e é algo bacana de percebermos como a mídia influencia as possibilidades e tendências da criação. Quando a recompensa surpreendente chega logo para a promessa da curiosidade, me parece mais fácil segurar o leitor. Fico me perguntando se isso funcionaria ao longo de um livro inteiro.

No e-mail com o exercício, Ane pediu desculpas pela pontuação, caso não estivesse correta. Um ponto que eu pensaria um pouco mais a respeito são as reticências. Elas reduzem a velocidade da leitura porque propõe uma certa lerdeza, quase como se a narração estivesse indecisa. Se o texto fosse meu, eu experimentaria escrever de outras formas para saborear as possibilidades:

Não, ele não entrou, foi arremessado.

Não. Ele não entrou, foi arremessado.

Não, ele não entrou. Foi arremessado!

Cada uma dessas frases tem um ritmo de leitura diferente. E aí entra a mágica da escrita: é uma escolha nossa. Desde que seja intencional, você jamais vai me ver dizendo que algo está errado. Porque foi como você escolheu usar a linguagem para se expressar. Exemplo: esse ponto final que coloquei entre errado e porque não está gramaticalmente correta, mas eu escolhi colocá-la ali porque quis criar um efeito específico de leitura pausada.

Está tudo bem experimentar com a escrita. ❤
Reginaldo entrou na sala. Arrastava sua perna manca ao som da batida da muleta que também rangia de dor enquanto seus olhos apertados e sobrancelhas enrugadas exprimiam o esforço que cada passada lhe custava. Queria estar ali. (Quésia Cunha)
Eu consigo construir uma imagem de Reginaldo a partir dessa descrição e creio que não a perderia enquanto continuasse a leitura. Da perspectiva da lente do detalhe original, creio que está ali uma caracterização que faz muito sentido pra mim.

O que eu cuidaria nesse trecho é o tempo para que o leitor respire e absorva as informações. Quando a muleta rangeu de dor, eu comecei a ficar perdido e ainda vieram os olhos e sobrancelhas e esforço e custo. Agora respira comigo, inspira devagar... Segura... Segura mais um pouco... Expira.

Que tal reescrever esse trecho em mais frases e brincar um pouco mais com o ritmo? Essa é outra lente, a do ritmo, mas por que não?
Reginaldo entrou na sala com olhar firme, trajando um terno azul marinho impecável. A reunião começou após o advogado cumprimentar todos os presentes com sua mão grande e áspera. (Darlan Cavalcanti)
No e-mail, Darlan comentou que é a primeira vez que participa de uma atividade do Ninho de Escritores. Bem-vindo!

O detalhe original está ali: terno azul marinho impecável, mão grande e áspera. Meu convite: que esses detalhes sejam ainda mais únicos, que tragam alguma coisa que seja tão peculiar e significativa que eu olhe para Reginaldo páginas adiante e pense: é o cara da mão grande e áspera.

A função do detalhe original é dar personalidade ao que está sendo descrito. Com essas duas descrições, eu sei que Reginaldo é um homem que cuida do seu terno e, portanto, provavelmente também da aparência, mas não é vaidoso o suficiente a ponto de usar cremes para as mãos. E aí como escritor eu posso inclusive brincar com isso, porque eu poderia escrever um texto inteiro sobre as mãos ásperas de Reginaldo, resistentes a qualquer hidratante. Vai depender só de que história eu quero contar.
Reginaldo entrou na sala. Não demorou a perceber que das várias mesas, cada uma tinha uma peça diferente, todas peculiares. Todas dignas do museu que estavam. (Fernanda Gonçalves)
O que significa peculiar? De acordo com o dicionário Priberam (juro que não tem patrocínio aqui, mas super aceitaria!), um dos significados é "particular, especial, próprio, privativo". Ou seja, é algo diferente.

O problema de usar uma palavra como peculiar é que ela me mostra o julgamento ("humm, isso é especial") sem me dizer o que faz as peças serem dignas desse julgamento. Como leitor, eu quero ser capaz de fazer meu próprio julgamento sobre o que estou lendo, então apreciaria mais ter acesso ao que torna essas peças peculiares, o que por tabela convida quem escreveu a pensar o seguinte: "como eu faço para que meus leitores entendam que essas peças são peculiares?".

Esse é o perigo dos adjetivos abstratos: eles dizem o que eu penso das coisas, mas não dizem muito sobre as coisas em si.
Reginaldo, o aparvalhado, entrou na sala estreita por aquela portinha minúscula, que de tão pequena, parecia mesmo ridícula. (Mabel Krieger)
Eu ri! Percebo em aparvalhado (que palavra ótima!) a mesma questão que tive com peculiares, eu leio o julgamento, mas não tenho acesso ao que está por trás dele. O texto pode chamar Reginaldo de aparvalhado e me mostrar, depois, o que isso significa na prática, por meio de suas ações. Taí algo que seria bem legal!

Parecia mesmo ridícula. Por quê? Só porque pequena? Pode ser, e talvez essa seja uma escolha de estilo para a escrita – imagino facilmente esse trecho sendo narrado por alguém de roupas coloridas, rosto pintado e brilhos por toda a parte.
Tornara-se uma pessoa cansada em demasia, que Reginaldo entrava na sala escorando nas paredes. Culpava a modernidade. (Vitor Manoel)
Quero começar dizendo que adoro esse final, "culpava a modernidade". Para mim, esse é um detalhe original. Consigo imaginar toda uma personalidade para Reginaldo a partir dessa ideia. Carrancudo, resistente a mudanças, avesso à tecnologia, daqueles que dizem que querem um telefone celular que só tenha a função de ligar, de preferência com teclas físicas grandonas. É um estereótipo, sem dúvida, e aí está o trabalho de quem escreve em brincar com isso e modelar o personagem para escapar do estereótipo em certos momentos – se isso servir à história que quer contar.

Eu experimentaria trocar a vírgula por um ponto e remover aquele "que". Quando leio com essas mudanças, percebo um tom melancólico que me parece apropriado para combinar com esta versão de Reginaldo.
Vamos parando por aqui, na próxima mensagem trarei o restante das contribuições para o exercício. Se você não viu a sua resposta aqui ainda, ela chegará em sete dias.

Tenha uma excelente semana!

Tales do Ninho






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