Conexões
Acordei com a voz do Chico Buarque na cabeça. Não sei se foi porque falamos dele na aula da pós, se foi porque vi algo sobre o livro dele na internet ou se há alguma mensagem que "Construção" está tentando me transmitir. Só sei que acordei. Não sou a melhor sambista, não tenho esse hábito. Mas gosto das imagens que o Chico constrói. Elas me lembram que o impossível está ali, sendo simbolizado com palavras.
A vida é feita de colagens artísticas. Nesse sentido, as palavras de Chico ecoando me fazem lembrar do último livro que li. Devoção, da Patti Smith. Assim como as canções e os livros escritos pelo Chico, Patti também reforça essa minha empírica teoria. Na obra, ela fala sobre como vivências tão desconexas ganham um só corpo em um conto que ela escreveu. Na sequência do relato, o conto. Na sequência do conto, a descrição da visita à casa em que viveu Albert Camus. Terminei a leitura tão desconsertada com a multiplicidade de recursos que a vida nos oferece para criar e um tanto inspirada a produzir arte também.
Coloquei o Chico para tocar enquanto escrevo. Deveria fazer as provas de recuperação dos meus alunos, mas creio que algumas palavras inofensivas na tela não vão matar ninguém. Escrever me acalma, o que é bom, porque me entristece ver meus alunos em recuperação – ainda mais aqueles que ficaram não por dificuldade, mas por descaso. Olho pela janela, parece que vai chover. O dia andou abafado e quente, inflamando ainda mais as pessoas ao redor com o velho desespero por não ter conseguido dar conta de tudo o que gostariam de ter feito ao longo do ano. Tenho a sensação de que, quanto mais conectada estou, mais demandas essa conexão cria. A todo instante há alguém me pedindo algo no WhatsApp – muitas vezes urgente, nem todas as vezes importante – e isso tem me devorado viva. Cada vez mais tenho deixado o celular longe, quando quero ter um tempinho de paz.
Ontem vi uma cena de um casal. Ela, com os braços ao redor do pescoço dele. Ele, preso naquele abraço, evitava olhar para ela. Ao contrário, buscava o mundo. O tédio de quem ouvia as palavras dela se mostrava claro no desespero do olhar ávido pelo mundo. Será que ir com sede ao pote é sinônimo de se colocar preso nos braços de quem não deveríamos estar? Mais uma vez penso no Chico, na Patti e em tanta gente que me inspira. Guardo o registro na memória com uma nota mental anexa de que isso daria algo em uma narrativa de ficção.
Respiro e volto à tela do computador. Penso na newsletter e nos cinco rascunhos que joguei fora (por mais que eu seja a pessoa que sempre diz que “não se joga texto fora”). Será que o meu perfeccionismo virginiano me coloca no lugar em que não gostaria de estar? Quantos diálogos perdidos em cada rascunho que fora para o lixo? O existencialismo, sempre ele atado à minha mente.
Escurece de vez. O céu desaba. Com a mesma fúria com que a água despenca das nuvens, as linhas brotam na minha página já não tão em branco. Não sei se escrevo como se fossem as últimas palavras, tampouco se crio como se fosse o último texto, mas compreendo que ser escritora me mantém viva, num eterno conectar de ideias, de estados e do mundo comigo mesma.
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