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tenho pensado #8

Coméquitá 🤙

É fevereiro de 2020 e oficialmente entramos vivendo o colapso climático mundial. Sendo assim, escrevo de uma São Paulo onde o outono se tornou a única estação e as chuvas insuportáveis tem causado danos absurdos na cidade (alguns também em mim, como uma insônia intermitente desgraçada).



De toda forma, isso foi só um jeito de puxar assunto, mesmo. Não se empolguem. Hahahaha. 

Nessa newsletter falo umas coisas aí sobre subverter. Tem algumas poesias legais ao longo do corpo do email, espero que gostem. No final com o Carnaval chegando já começa a rolar em meu coração aquela vibe tudo é possível.

(pra ler a news de fevereiro do ano passado que foi, de fato, sobre carnaval é só clicar aqui)

🚧

E, por falar em carnaval, quais os planos? Sei que muita gente aproveita pra descansar e muita gente se organiza pra ir em todos os blocos do mundo. Independente do que esperam, desejo que consigam.

(usem camisinha)

Então é isso, faraós. Bora aproveitar a vibe maravilhosa que o carnaval traz pra começar algo incrível (tipo uma revolução de arte degenerada) (me chamem). 

revolucionar-destruir-criar

Quando comecei a pensar nessa newsletter estava muito claro, pra mim, sobre o que eu queria falar. Poesia e política. Com o processo do passar dos dias no Brasil de 2020 e de pensar, até mais do que de ler, sobre isso fui me dando conta de que seria um desleixo manter o discurso que eu pretendia.

Só nas últimas semanas foram dois casos de censura de livros que incluíram Machado de Assis e Gabriel Garcia Lorca. Nessas circunstâncias é quase impossível manter delimitações estreitas sobre o que torna uma poesia algo relacionado com o universo político. O próprio ato de leitura é político. E se ler é subversão, imagina escrever.

Pensando bem, será que já foi muito diferente?

CONTRA LA POLICÍA 
(Miguel James)

Toda mi obra es contra la policía.
Si escribo un poema de Amor es contra la policía
Y si canto a la desnudez de los cuerpos canto contra la policía
También si metaforizo esta Tierra metaforizo contra la policía
Si digo locuras en mis poemas las digo contra la policía
Y si logro crear un poema es contra la policía
Yo no he escrito una palabra, un verso, una estrofa que no sea contra la policía
Mi prosa toda es contra la policía
Toda mi obra incluyendo este poema
Es contra la policía.

Quero dizer, no sentido estreito (o famoso stricto sensu) a censura pode não ser sempre tão explícita quanto tem sido nos últimos 3 anos no Brasil, mas essa não é a primeira vez nem a única forma de arte-confronto. A própria poesia tem no cerne a subversão, já que subverte a forma funcional como se pensa a linguagem e suas ambições de comunicar. Se essa linguagem quer ser clara, direta, universal, o buraco da poesia é mais embaixo. Na poesia a linguagem é: outra coisa. Prazer. Beleza. Sutileza. Incompreensão. Subversão. 

o amor é uma tecnologia e guerra (cientistas sub notificam arma-biológica) indestrutível:: 
(Tatiana Nascimento)

a urgência dos nossos sonhos não espera
o sono chegar: isso que a gente faz
deitada 
tb chama
revolução.

sua palma, em linhas p
retas, dança calor na minha pele
(cores tortas, que somos).

isso que 
aparenta um segurar-de-mãos
ousado não é declaração de posse
ou de mero par, casual que fosse, nem
só demonstração de afeto pública,
carícia brusca contra essas
tropas, brutas

(eles quase que nos
somem);

é a nossa arma de guerra, “mana minha”, desejada

amante,
y essa eles não vão
adulterar desativar corromper deturpar
denunciar na ONU caçar como terroristas
capitalizar sabotar (re)acionar - essa eles não podem

não sabem y nem quereriam

acionar -

essa é a química
hormonal
visceral
astral
usa fonte de energia
renovável (“friccional”) 
é inesgotável reciclável tem

garantia

ancestral

o nome dela anda meio banal, 
“afeto" “amor” (se bem que a prática tamos
reinventando…), mas ainda é nossa maior
tecnologia (y a mais vasta) en contra y
adelante a escassez dessa cruzada

y eu não tenho
medo: cada peito como o nosso a
briga a força de mil granadas
. mesmo assim nem
se forçadas
paramos de lançar
primaveras pelos ares
(agourentos que eles cavam)

- eu acho   
que faz tempo
que sonhamos acor
dadas, que nossa paz
é barulhenta,

y que da areia dos nossos olhos insones
a noite fabrica suas pérolas (de 
amor, e de outras guerras):

& elas brilham
como nós.       

Agora uma coisa é certa: prazer, no Brasil, nunca deixou de ser subversivo. Como mulher tenho lugar de fala pra comentar isso, rsrsrs.

Como a busca tá na base da poesia (a busca por formatos, sensações, possibilidades, etc) não a toa ao longo da história tantos poetas foram e são ativistas. E a America Latina é cheia deles. Na verdade se a gente pensar quase toda poesia nacional durante um período longo e próspero tem algo de assumidamente político. Nos poetas atuais também tem bastante a política que vem daquele lugar de compreensão que o pessoal é político (nos últimos anos isso inclusive vem se expandindo). 

A circunstância, claro, faz a arte. Tanto no sentido de que os artistas respondem ao seu mundo quanto no sentido de que o olhar se altera segundo o mundo.

Ou seja, agora (tal qual no nazismo) toda arte é degenerada se não louva o poder vigente. Isso também faz, tem feito, com que mais arte degenerada seja produzida como resistência e luta. Mas isso também molda o olhar dessas pessoas que acabam vendo degeneração em mais lugares e censurando Machado de Assis. 

A pretensão (nazista) de uma arte bela e pura é uma pretensão de uma arte que não fala nem sobre nem com o existir humano. Então, em um país que afunda, essa arte é pra quem? Eu chutaria: para os que se crêem escolhidos (e gozam de absoluta falta de autocrítica). E portanto, agora no Brasil, a promoção desse ideal (nazista) não tem nada a ver com arte mas com reafirmação e conformismo. 

O oposto da poesia. 

Onde entra o sublime nesse enfado?

Ultimamente lembro sempre de um texto que li sobre a arte russa no stalinismo, onde acho que foi o Malevich que disse que a progressão de controle e da ideia de criação de uma arte-propaganda foi "a desforra dos medíocres" e o que, senão isso, é a verdadeira vocação geral da política atual, né? Tira "ordem e progresso" e coloca "desforra dos medíocres".

Shemá (10 de janeiro de 1946)
(Primo Levi)

Vós que viveis seguros
Em vossas casas aquecidas
Vós que achais voltando à noite
Comida quente e rostos amigos:

Considerai se isto é um homem,
Que trabalha a lama
Que não conhece paz
Que luta por um naco de pão
Que morre por um sim ou por um não.

Considerai se isto é uma mulher
Sem cabelos e sem nome
Sem mais força de recordar
Vazios os olhos e o ventre
Como uma rã no inverno.

Meditai que isto aconteceu:
Vos comando estas palavras.
Gravai-as em vossos corações
Estando em casa, caminhando na rua,
Deitando, levantando:
Repeti-las a vossos filhos.
Ou que vossa casa se desfaça,
A doença vos impeça,
Vossa prole desvie o rosto de vós.

Ironicamente, durante um período grande da minha vida, era padrão dizer que a poesia política era inferior. Sem graça. Ruim. Coisa de gente sem talento. O “descansa, militante” das artes não era nem privilégio da minha geração como se poderia pensar (já que rola aquele papo de que as gerações se contrapõem e a circunstância política da minha eram bem diferente das anteriores).

Em detrimento do que eu lia, continuei com esse pensamento tacanho por um bom tempo. Até que conheci o Surrealismo Português, foi uma paixão lancinante da minha vida. E, apesar de ser uma paixão que tem uns bons 20 anos, não direi que casamos porque deixo essas metáforas medíocres pra quem luta contra a ~arte degenerada~.

O surrealismo português foi um movimento efervescente e com nomes até hoje muito relevantes da poesia portuguesa, por exemplo o Cesariny. Por ter sido um movimento tardio, quando comparado com o surrealismo francês, e por ser um movimento que surge dentro do salazarismo, ele foi muito diferente. Na época eu escrevi isso sobre essa diferença: 

“Somente mais de dez anos depois da publicação do Manifesto de Bretón é que se começa a sentir a influência surrealista em Portugal, já marcada pelas alterações presentes no “Second Manifeste du Surréalisme”,  que apresenta caráter nitidamente político. Yves Duplessis chama a atenção para o fato de a revista “La Révolution Surréaliste” mudar seu nome para “Le Surréalisme au Service de la révolution”: “sendo a libertação do homem a primeira condição para a libertação do espírito, esta pode ser atingida pela revolução proletária”. Tal idéia é especialmente atraente aos grupos surrealistas portugueses que, acoados por um regime opressor, são perseguidos das mais diversas maneiras. De tal forma que Cesariny escreve: “Em cada país a posição surrealista tem de se colocar conforme as suas próprias possibilidades e formas de actuação, condicionada pelo meio em que existe e é obrigada a ser e servindo-se da capacidade de revolucionar-destruir-criar que esse mesmo meio lhe proporciona”. Mais adiante o poeta segue, deixando claro o modo de atuação do(s) grupo(s) surrealistas na Portugal salazarista: “Debaixo de qualquer ditadura não é possível uma actuação surrealista organizada sem as respectivas consequências de represálias policiais e portanto sem o aparecimento dos respectivos mártires e heróis. A acção surrealista, neste caso particular, está limitada a uma série de actos que poderíamos chamar de guerrilhas, ou a um acomodamento reacionário com os respectivos ministérios de PROPAGANDA.  Das duas posições é, sem dúvida, a primeira a única possível, embora, por vezes, bastante difícil de manter.” 

O processo maravilhoso de notar que todas as poesias (as de amor e as revolta e as de humor e as de sacanagem, todas mesmo) eram em algum sentido políticas mudou bastante a forma como eu olhava para a poesia e para a política. 

Reabastecimento
(Mário Cesariny)

vamos ver o povo
que lindo é
vamos ver o povo.
dá cá o pé.

vamos ver o povo.
hop-lá!
vamos ver o povo.
já está.

Isso tem bastante relação com o período deles, o salazarismo. Li, na época, que eles eram tão perseguidos que não podiam anunciar seus eventos sem brotar polícia, então criavam saraus de guerrilha. Ou seja, reuniões artísticas surpresa que começavam tão rapidamente quanto acabavam.

Uma das propostas do Surrealismo Português foi trazer o narrador para o narrador. Quero dizer, aproximar, falar com propriedade e sobre si, em primeira pessoa. Eles batiam de frente com outras correntes da época (muitas, talvez todas, Cesariny batia de frente até com o próprio movimento) e acusavam especialmente o o neo-realismo, corrente literária de grande força, de trabalhar com “massificação ideológica” e caráter “pedagógico” nos seus personagens. Coisa que esse poema mostra perfeitamente (e lembra inclusive algumas posturas políticas vigentes). 

E a noção de que a poesia podia ser uma forma de que recusar a sociedade não por alienação, como eu vinha tentando, mas por resistência, luta, embate foi talvez uma das coisas mais doces que me aconteceu. 

 

Eu poderia continuar aqui indefinidamente, admito. Mas preciso dormir porque estou com essa insônia desagradável e amanhã (hoje) quero correr de manhã (corri, mesmo, parabéns pra mim). Então encerro como comecei a pensar isso tudo que escrevi aqui.

Explico.

Hoje (ontem) acordei dos sonhos inquietos que abatem os insones com uma epifania: se o poder (o homem branco, o dinheiro, o estado) sempre se colocou como uma transubstanciação do “dom da razão”, subvertendo ela no que bem entende (censura, perseguição, exclusão, ódio, assassinato) não é de surpreender que alguns de nós adotem e subvertam o silêncio e a inação impostos. 

Como fazemos isso? Falando de dentro e agindo pela costura do universo.

Eu pensei isso porque tenho lido bastante sobre procederes mágicos mais periféricos e me ocorreu que em certo sentido a magia e a poesia podem expressar a mesma coisa: subversões de lugar imposto. Ou seja, não simplesmente aceitar onde se está e o que se deve fazer segundo a "razão".

Então pobres, presos, LGBTs, mulheres, indígenas, negros, ciganos, judeus, muçulmanos, imigrantes, e até homens delicados, mulheres masculinas, pessoas deprimidas, etc fazem processos semelhantes de entender que essa violência que desumaniza não é sobre si (aka, não evidencia - como jura fazer - nada oculto sobre essas pessoas) ao mesmo tempo que assumem que ela está acontecendo consigo (porque sofrer as consequências disso nem sempre é o suficiente para assumir esse lugar, ao menos nós mulheres fomos ensinadas que nossa dignidade está muito relacionada com silêncio).

E, em muitos casos, esses processos vem desse lugar de "exílio da razão" onde foram "confinados".

Deixar de notar esse lugar como pejorativo e entender que as coisas podem não ser exatamente como fomos ensinados a pensar que eram é subverter uma lógica. Fazer isso deste mesmo lugar, o lugar da "não razão" é subverter ainda mais.

Quem não está, portanto, no lugar original do "dom da razão" (que é o do poder) muitas vezes faz esse movimento de retomada de si pelo lugar onde foi colocado e mantido, seja ele o lugar da poesia, da magia, do comportamento, do prazer, do afeto, enfim (coisa que eu sinceramente considero muito mais interessante que o de simplesmente ficar tentando emular esse outro lugar e essa outra noção de poder e sucesso).


(Juliana Lossio)

Porque a arte não deixa de ser uma forma de pensamento mágico e recriar ou subverter os universos é um jeito de ingerir essa cápsula de brutalidade sem manter isso em si. Ou seja, digerir. Mandar pro mundo. Universalizar o sutil e subjetivo.

A poesia sobre a qual eu tentei falar nessa newsletter faz exatamente isso.

Como escreve a Anne Boyer nesse textaço:

A história está cheia de pessoas que simplesmente se recusaram. Elas disseram não obrigada viraram as costas e fugiram pro deserto, vestiram trapos pelas ruas, viveram em barris, incendiaram suas próprias casas, andaram de pés no chão pela cidade, mataram seus estupradores, recusaram o jantar, meditaram até atingir a luz.
(…)
A poesia às vezes é um não.
(...)
Tem muito significado-espaço dentro de um não dito com a tremenda lógica de uma recusa à ordem do mundo. O não da poesia pode proteger um sim potencial - ou, mais precisamente, o não da poesia é aquele que pode proteger um BAH, CERTO*, ou todas as variáveis possíveis de BAH, CERTO. Neste sentido, um poema contra a polícia é também e sempre um guardião do amor pelo mundo.

Ou seja: arte degenerada é luta e resistência.

Faz sentido pra vocês?

* no resto do país o "BAH, CERTO" poderia ser traduzido como "sim pra caralho"

(acabei de notar que falei em fé mágica, poesia, sonho e surrealismo. achei que tava viajando mas é tudo parte do mesmo universo, afinal).
 

--X--

O primeiro poema desse texto é do Miguel James, um poeta de Trinidad que eu só li na internet. Aqui e aqui tem mais sobre ele.

O segundo poema é de uma poeta brasileira, Tatiana Nascimento, do livro 07 notas sobre o apocalipse ou poemas para o fim do mundo. Ganhei esse livro de presente do Acácio que é, por si mesmo, um presente do universo pra mim.

O terceiro poema é do Primo Levi, talvez mais conhecido, tá no livro Mil sóis, da Todavia, que saiu ano passado. 

O quarto é do Cesariny, tem em um monte de lugares. Aqui a Wikipedia dele e lá no final coloquei um vídeo dele velhinho recitando Mario de Sá. Na verdade recitando entre aspas porque ele faz leves adaptações e toma pra si, parece um poema dele mesmo. Amo tanto esse vídeo, esse homem e esse poema. Aproveitem. Aaah, o título lá em cima "revolucionar-destruir-criar" tá na citação do Cesariny no corpo do texto.

A Ilustração é a da Juliana Lossio que eu sigo no Instagram e tem uma HQ online chamada Lilly

Citação

pra "eu te amo" diga foda-se a polícia/ pra "as chamas do paraíso" diga foda-se a polícia, não diga
"recrutamento" não diga "trotsky" diga foda-se a polícia
pra "alarme" diga foda-se a polícia
(Sean Bonnery)

(peço perdão por essas tentativas toscas de tradução, não são o meu rolê mas sei que muita gente não lê em inglês e achei que valia. aqui inteiro em inglês)

(queria aproveitar porque tem outro livro de gringo que queria indicar: Felon, recém lançado fala sobre a experiência do autor na cadeia e na vida, como um todo, sendo ex presidiário. é bem bonito. aqui tem um texto sobre ele na New Yorker)

Poesinha

Minha prece para as mulheres 

Minha depressão chega com a chuva 
Mas se anuncia pelo nada 
Ancestral como a solidão da minha mãe
[e da mãe dela e da mãe dela e da mãe dela]

Sento na sala 
Vazia 
A mulher é sua Itaca
Uma mancha de caneta no papel
Única estrela no centro de SP

A solidão não nasce mulher
Torna-se 
Como tornou-se minha tia
Como tenho me tornado eu ela

É o vento que me enfia 
Esses pedaços de nada
Uma buceta no peito
Herança da minha vó
[e da mãe dela e da mãe dela e da mãe dela]

--X--

(admito que queria, mesmo, era encher essa parte das poesinhas com coisas que escrevi sobre pombos, meus grandes objetos de interesse nos últimos meses. hahaha. então aqui vai uma e fuck the police:

Nutro o amor dos poetas
[impróprio e obsessivo]
Pelos pombos quase mortos
[ainda vivos]
Do centro
)

♩ ♪ ♫ ♬
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