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tenho pensado #2



Desde já, perdão pelo vacilo, atrasei mesmo. Janeiro, como era previsto, chegou feito martelada e atrasei, não nego. 

Normalmente nesta época do ano só preciso conciliar praia e trabalho mas tendo em vista nossa política estou tendo que conciliar também meu desejo de dar na cara das pessoas e isso é difícil, então atrasei.

De toda forma, em minha defesa: este correio deselegante tem um textão ainda mais textão (e olha que editei até cansar os dedos), uma poesinha que eu gostei de ter escrito e dois sambas políticos para ritualizar o terror. Vocês vão notar que o tema que permeia este correio inteiro e minha vida é a política brasileira atual pois estou sofrendo de monomania
🌻
MAS para rebater uma potencial bad ele também tem a alegria que eu trouxe de um banho de mar no final de semana, um monte de emojis deslocados e uma mensagem positiva de ano novo. 

Espero sinceramente que gostem. No mais, sigamos neste processo ousado de ser quem somos durante este período lamentável que vivemos. 

Feia, despenteada e do mar

Ia citar aqui uma parte de Hipias Maior pra fazer graça com o fato de que até o Sócrates era chamado de ignorante quando falava de beleza, mas não consegui achar uma tradução copiável disponível então só digo que outras mulheres me falaram com generosidade sobre outros aspectos da beleza, compreendo que existam, não os desconsidero nem desrespeito (ainda que tenha dificuldades para dissociar a beleza como produto de normatização), mas só sei falar do que conheço.
 

🦚

Sendo bem sinceras(os) consigo mesmas(os), vocês lembram a primeira vez que notaram algo de errado com essa coisa de beleza?

Eu admito que tive muitas chances: na minha roda de amigas dietas eram o padrão e comer qualquer coisa com mais de 10 calorias era “desleixo” ('era'). Além disto as meninas, adolescentes - mesmo as mais pobres - gastavam muito dinheiro em tratamentos estéticos e roupas. Depois de certa idade todo mundo começou a pintar o cabelo de loiro, uns anos depois veio o sólido falso “ruivo natural”. Também tinha a coisa da idade. Ao longo dos anos, por exemplo, assisti meus amigos envelhecendo e suas namoradas apenas mudando de nome, nunca de idade.

Infelizmente nada disso me fez notar que tinha alguma coisa estranha com o que chamávamos de beleza. Era como se o fato de a beleza estar sempre um pouco além do que as mãos conseguiam alcançar fosse o correto, afinal de contas não era pra ser fácil porque não era pra todo mundo, mesmo.

Aqui eu também preciso assumir que talvez não tenha notado nada disto porque beleza me interessava zero (o que me tornava ainda pior para o mundo, claro). Eu era uma adolescente que só queria ler e debater, isso me fazia feliz. Sendo ou não considerada bonita, beleza sempre foi um estorvo pro que eu queria fazer e pra quem eu era (como depois se tornou a obrigação de beleza e tudo mais que me fazia gastar tempo e dinheiro com uma besteira irrelevante demandada socialmente, profissionalmente, etc).

Isso que a gente chama de beleza eu aprendi tarde e contra a minha vontade.

Talvez por isso ficha só tenha caído, mesmo, quando entendi que características do meu corpo que eram consideradas feias e associadas com vulgaridade também eram “coisa de pobre”. Talvez vocês tenham dificuldade em entender isto então vou dar um exemplo:



[2 broke girls foi um seriado cuja história basicamente tratava deste circular entre os dois mundos sociais de duas mulheres. A patricinha que perdeu o dinheiro porque o pai era corrupto -acho- era loira, magrinha, delicada e romântica (vejam como aspectos físicos remetem aspectos não físicos). A personagem pobre era uma mulher voluptuosa com peitões, bocão, e totalmente safo, sabia sobreviver sozinha no mundo, era forte e odiava romance mas adorava sexo (claro). as duas eram brancas (claro).]

Então pra parecer que eu não era tão pobre assim e evitar ser hipersexualizada precisava “esconder a bunda” e “disfarçar as coxas” (é claro que isso de bunda, coxas e até peitos, magreza e estatura também tem relação com o padrão europeu de beleza porque padrões são criados pensando em um ideal e este ideal sempre foi europeu).

De toda forma, foi quando eu notei um recorte social nos padrões que a beleza passou a me interessar porque as diferenças sociais eram uma coisa que me interessava.

Mas passou a me interessar negativamente.

Tendo existido no mundo por quase 40 anos posso dizer que as modas mudam e os padrões também, mas não tanto. Não de verdade.

O padrão de beleza pode já ter circulado entre peito pequeno e peito grande, coxa fina e coxa um pouco mais grossa, bunda reta e bunda um pouco maior (sem celulite e branca e magra), mas nunca foi uma coisa saudável. E nunca será.

E desde que eu tenho notícias também não é sobre beleza.

Acho que o primeiro passo de fazer as pazes com isso é entender que padrão NENHUM existe pra nos fazer felizes nem "empoderadas". Padrões existem pra nivelar as pessoas e coisas. E o padrão de beleza existe pra nivelar pessoas, anseios e desejos.

Como disse a Naomi Wolff:

💋

"O mito da beleza na realidade sempre determina o comportamento, não a aparência." 

💋


(em 2018 finalmente saiu uma edição nova do Mito da Beleza, eu cito a antiga, mesmo)

O que esta ideia toda cagada de beleza vende não é o suposto sublime das coisas belas, é uma padronização no estilo de vida, em quem somos. E, pior, em quem desejamos ser, como desejamos ser percebidos, o que desejamos fazer, etc.

Padrão de beleza dita desejo para muito além do desejo sexual do homem babão, o desejo como ambição mais ampla, mesmo, aquilo que norteia a vida.

E isto parece até meio óbvio quando pensamos que, além das mulheres quem também aderiu ao "discurso positivo" sobre o corpo foram as marcas de beleza (mesmo com boa parte do debate girando em torno de posturas massacrantes da indústria da qual fazem parte). É praticamente tão clichê quanto homens que só "são feministas" quando o assunto é liberdade sexual.

E o mais triste é que nós estávamos tão sedentas por aprovação estética que demorou para começarmos a olhar criticamente pra este tipo de postura. Mas começamos e, como aponta de maneira muito pertinente este texto aqui, o problema em usar ativismo e táticas que subvertem o status quo como marketing é que o seu sucesso torna estas táticas instantaneamente não subversivas. O famoso processo de esvaziamento do discurso que acompanhamos tantas e tantas vezes.

Ou seja, quando a Dove assumiu sua má postura em relação ao que fazia e pregava a indústria, seu mea culpa mudou o marketing mas também ajudou a esvaziar um discurso que (segundo a autora do texto) vinha desde os anos 1960 lutando contra a discriminação, a indústria da dieta e outras coisas que tem caráter extremamente político (e, como tal, não são interessantes pras marcas).

Tudo isto quer dizer que esta alteração no discurso da publicidade está mais para uma alteração no formato, o que se vende continua sendo a mesma coisa porque vender algo pressupõe criação de desejo (por, vamos assumir, se a gente só comprasse coisas necessárias o mundo inteiro seria totalmente diferente) que é um dos responsáveis pela insatisfação crônica que todos conhecemos, por exemplo.

E foi andando por esse trajeto que chegamos no momento exato em que tu está lendo este correio deselegante.

Neste momento (tão do futuro e já tão do passado, também) processos extremamente radicais como low poo acabaram virando linha de xampu (literal e figurativamente). Neste momento nós colocamos nossos batons vermelhos e nos privamos de comida acreditando que a libertação feminina só pode ser alcançada por intermédio deste "novo" padrão de beleza, que é sempre mais vibrante, libertador, feliz.

Ocorre que este produto novo e atraente não deixou de ser uma forma de padronizar, e nós tantas vezes esquecemos o que são os padrões, pra que serve este nivelamento e quem é acolhido (no masculino) pela cultura da beleza feminina.

Disse a Wolf:

"Mas as mulheres de todos os níveis sociais cintilam. Dale Spender, em Man Made Language, revela que durante a conversa os homens interrompem as mulheres na grande maioria das vezes e que os homens dedicam atenção apenas intermitente às palavras das mulheres. Por esse motivo, toda uma pirotécnica de luz e cor precisa acompanhar o discurso feminino para atrair uma atenção que começa a se dispersar no instante em que as mulheres abrem a boca. A aparência das mulheres é considerada importante porque aquilo que dizemos não o é."

E segue sendo tão esperado que a gente acate inquestionavelmente a ideia de que a beleza é o grande trunfo/ poder feminino que nós aceitamos até marcas nos dizendo, na mesma campanha, que nossas axilas tem a cor errada (que invariavelmente, notem, é algum tom escuro) e que devemos nos amar como somos.

Não é de se estranhar que tantas mulheres estejam ficando confusas e infelizes consigo mesmas ao se confrontarem com as demandas deste discurso esvaziado. Quero dizer, nós estamos loucas ou as mensagens são conflitantes? É possível se amar em uma sociedade de ódio?

A ativista Caleb Luna é uma das mulheres que expõe dificuldades em lidar com este discurso impositivo sobre amar o seu corpo porque, em última instância, ela nos lembra que isto é contraditório com a vida cotidiana no mundo. Mas, além disto, ela finaliza:

"Embora eu tenha uma enorme quantidade de amor próprio, esse amor está mais ligado a quem eu sou do que ao corpo no qual eu existo."

E eu, particularmente, acho isso super saudável porque uma mulher se considerando um indivíduo complexo e não um objeto de decoração é bom. Mas, claro, eu penso isto porque sou uma feminista nojenta que odeia homens ¯\_(ツ)_/¯

Por isto também que a Caleb não tá sozinha. Tem a galera do movimento que se intitula Body Neutrality e se baseia em pessoas que questionam a importância central desta ideia de beleza e se preocupam mais com o que o corpo pode proporcionar do que como ele aparenta. Sobre isto a psicoterapeuta Alison Stone disse:

"Muitas vezes caímos na armadilha de amar ou odiar nosso corpo. Acho que esse movimento é uma oportunidade de encontrar um meio termo. A neutralidade corporal é simplesmente ser. É ser sem ficar julgando ou guardando emoções intensas a respeito da nossa aparência."

Parece óbvio, mas não é tão simples assiml.

O que ela chama de emoções intensas não surge do nada. Ninguém em sã consciência optaria por viver esta beleza desgraçada se existisse outra "disponível". Quero dizer, "O Mito da Beleza" (o livro, não o mito em si) vai completar 30 anos e segue inconsolavelmente relevante porque nos diz que quem parecemos define quem somos em sociedade. A beleza não existe per se, ela é um conjunto de regras que, a Wolf defende, depois de a mulher feminista ter rompido com o domínio do lar se tornou o único modo de controle social possível desta mulher. E por isso mesmo é extenuante, ela quer nos deixar extenuadas, como diz talvez a citação mais repetida da autora no país. 

"Uma cultura focada na magreza feminina não revela uma obsessão com a beleza feminina. É uma obsessão sobre a obediência feminina. Fazer dietas é o sedativo político mais potente na história das mulheres; uma população passivamente insana pode ser controlada."

Para além, "ela é um escuro filão de ódio a nós mesmas, obsessões com o físico, pânico de envelhecer e pavor de perder o controle."

E isto se apresenta até mesmo na forma como acreditamos que nossa libertação está quase que necessariamente conectada com agradar o outro e usar seu corpo como arma de sensualidade (não sexualidade). Sobre isto a Virginie Despentes, que citei no primeiro (e também anterior) correio, tem uma teoria:

“Jamais uma sociedade exigiu tantas provas de submissão a uma ditadura estética, tantas modificações corporais para feminizar o corpo. Ao mesmo tempo nenhuma outra sociedade permitiu de modo tão livre a circulação corporal e intelectual das mulheres. A refeminização parece uma desculpa após a perda das prerrogativas masculinas, um jeito de tranquilizar os homens. “Sejamos livres, mas não muito. Queremos jogar o jogo, não desejamos os poderes ligados ao falo, não queremos assustar ninguém.”

Ou, como disse a Wolf:

"Tanto os homens quanto as mulheres tendem a erotizar somente o corpo da mulher e o desejo do homem."

Mas se vocês não botaram fé, além delas também tem a Heather Widdows, autora do livro "Perfect Me: Beauty as an Ethical Ideal". A Heather diz que:

"Agora nós temos uma câmera o tempo todo e isto transformou nossos comportamentos. Quanto mais jovem tu for, mais vai participar da cultura do selfie e mais teu comportamento vai mudar."

E uma das coisas que muda com as redes sociais, ela diz, é que nossos "pares", aquelas pessoas com os quais nos comparamos, se tornaram praticamente todo mundo, o que aumenta e intensifica a sensação de estar fracassando. Ela endossa isso com a pesquisa britânica Girls' Attitudes de 2016 que diz que entre os 17-21 anos 80% das mulheres acredita que deve perder peso (e 84% disse que sente pressão pra ser perfeita).

Mais que isto, a Heather chama atenção pra "linguagem moral" que associa culpa, vergonha ou valor com a busca por beleza e perfeição.  

"Sucesso em relação a beleza se tornou sinônimo de sucesso como um todo, então quando falamos que "desleixamos" da dieta não estamos falando só de beleza. A coisa se torna um ideal ético, um fracasso humano".

Quem quiser ou precisar de mais exemplos, sugiro colocar "dieta limpa" no Google (o limpo, o sujo, o bom, o mau, etc).

Exatamente porque o medo se ser feia, envelhecer, engordar, perder o controle, não é um medo de ser feia, envelhecer, engordar nem perder o controle, que são coisas normais. É um medo de fracassar como mulher. E quem me diz que eu fracasso como mulher se sou feia, envelheço, engordo, perco o controle é a sociedade na qual vivemos.

Ocorre que estes dias a ministra Damares (Damares que vem pro mal) teve a gentileza de explicitar o subtexto da beleza na sua fala.
 

🔥 < "Sabem por que elas (feministas) não gostam de homem? Porque são feias e nós somos lindas." 

E como ninguém quer se associar com Damares (👎) a fala da ministra nos tirou temporariamente de um transe: fez com que a maioria de nós saísse da constância de ser digerida por este discurso e respirasse pela primeira vez em muito tempo, lembrando que perseguir um padrão de beleza é o próprio limbo da alma.

Por isto acredito que nada vai fortalecer e ajudar a evoluir tanto nossas lutas e debates quanto este governo (Damares que vem pro bem). E se não quiserem acreditar em mim, acreditem na Débora Diniz:

"É bom que Damares seja bufona no cargo. Fortalece o feminismo, pois uma geração de meninas, adolescentes, mulheres comuns que jamais pensariam sobre o feminismo passam não só a abraçá-lo como levar adiante suas mensagens. Não por acaso muitas mulheres e homens repetiram causa feminista simples após o episódio das cores – vestiram-se como quiseram no trabalho, na casa ou nas televisões. Quanto mais Damares odiar o feminismo, mais fortes as feministas sairão desta história."

(num passado nem tão distante por muito tempo este texto da Jarid foi o único que li questionando a inquestionabilidade da beleza, depois escrevi este)

Citação

Como já tem muita citaçao escrita resolvi fazer uma citação visual da HQ Virus Tropical da equatoriana Power Paola, lançada no Brasil pela Nemo.
 
 
 

Poesinha

(andei pensando em abolir esta sessão mas me disseram que isso era falta de autoestima e sigo um pouco mais)

Bigamia

Um dia do verão paulista em 2016
No calor alucinado de queda do capitalismo
Onde nadamos e bebemos com uma alegria desempregada

Depois

Um dia com a luz do verão gaúcho
Nós docemente acertados
Sentindo a brisa do rio

Um verão capaz de nos fazer esquecer
Esta mortalha que simplesmente aceitamos
Porque o que poderíamos fazer
Afinal
Um verão que nos desse lembranças doces e inocentes
Como se estivéssemos em 2007
Lembranças tão vivas que seríamos capazes
De rir das noites terríveis de 2011
Ou nos aquecer no desolado de 2017

Um verão sem sequer traço deste
Irremediavelmente cruel
Inverno

Sonzeira:

 
Aqui em casa já é pré carnaval e só toca samba-de-luta. 
🎉Nos vemos em fevereiro 🎉
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