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Além da Terra Plana
Existem algumas certezas muito fixas no psicológico do ser humano. Não são certezas biológica que nascemos instintivamente cientes, mas são regras tão antigas e bem resolvidas que já não precisamos debater a questão.
Uma dessas crenças muito bem resolvidas é a teoria de que a Terra é esférica, ou pelo menos essa é a forma mais comum para se referir ao formato do nosso planeta.
Conspirações existem aos montes. Desde quem acha que a terra é oca e seres intra-terrenos habitam no centro, à quem acredita que o governo americano guarda corpos de alienígenas num complexo secreto chamado área S4, dentro do polígono de tiro e testes nucleares de Nellis, a Área 51.
A discussão sobre o formato da Terra é uma das mais antigas que existem. Vi o assunto isso com bastante enfase quando comecei a estudar física, por ser uma das formas de ensinar ângulos e relações trigonométricas. Eratóstenes, um pré-socrático de 276 a.C, foi o primeiro a calcular a circunferência da terra utilizando relações de ângulos, esse experimento é usado até hoje para explicar trigonometria.
Alcançar a medida precisa da circunferência da terra é um dos marcos que ajudou a confirmar a hipótese de que a terra não é plana, mas esférica. Apesar disso, milhões de experimentos foram feitos e reproduzidos por cientistas ao longo dos séculos, comprovando que mesmo não sendo uma esfera prefeita, afirmar que a Terra é redonda é uma aproximação boa o suficiente.
Desde então a afirmação da terra redonda serviu como base para todas as outras grandes descobertas da física, guiando o funcionamento da natureza e nossa interação com o planeta, aviões voam e entendemos bem a gravidade e os efeitos que são vitais para construção de aeronaves cada vez mais seguras e eficientes, emitimos ondas de rádio entre longas distâncias considerando a curvatura da terra no posicionamento de antenas, e claro, fomos capazes de enviar seres humanos para fora do planeta com toda essa bagagem que a física nos proporciona.
Mesmo com tudo isso, nos últimos 6 ou 7 anos, uma nova vertente de pessoas que afirmam que a terra é plana vem surgindo em grande velocidade.
Mas por que acreditam numa ideia batida faz tantos séculos?
Existem algumas explicações para endereçar este problema, e preciso passar rapidamente por elas antes de chegar onde eu realmente acho relevante.
1. Ao assistir o documentário Beyond the Curve, no Netflix, podemos entender uma das ferramentas para se fazer acreditar na ideia da terra plana (desculpe isso não é uma teoria) vem de um conhecimento pobre da ciência. Quase tudo que eles consideram uma prova que refutaria a ideia da terra redonda, é puro e simples falta de conhecimento básico de física, aquela do ensino médio.
2. A base central para que as afirmações absurdas soem críveis surge da descredibilização de autoridades cientificas. Quando a ciência e professores, ou até mesmo órgãos mundiais são descreditados como fontes confiáveis, o que você diz e as visões do cotidiano são a única forma de validação do mundo.
3. Como não existem fontes externas de autoridade, tudo acontece dentro de um modelo confirmação interna. O que alguém diz via de acordo com a crença central, e isso confirma ainda mais essa crença. No documentário mencionado, chegam a questionar uma Podcaster terraplanista sobre suas fontes de informação. Ela, sem sentir nenhuma vergonha alguma responde: "eu mesma"
4. A maioria são pessoas de mais idade e solitárias. E este é o ponto que considero importante.
Algo que observamos através do documentário, é que terraplanistas possuem, no geral, o perfil de pessoas solitárias, que dentro da sociedade seriam vistas como estranhas e acabariam excluídas. Quando entendemos que dentro de um contexto comum essas pessoas são ignoradas e invisíveis, mas que ao adotar a terraplana ganharam respeito, notamos que terra plana não é sobre ciência.
Assim como adeptos de muitas crenças absurdas, quem reforça a terra plana muitas vezes está adotando um cenário apenas para encaixar-se num mundo onde sentem-se importantes, que adquirem respeito de grupo.
A crença no fim, não é mais sobre os 3 primeiros pontos, torna-se puramente uma questão de pertencimento.
E por que é importante entender isso? Porque nossa primeira postura ao descobrir alguém que acredita na terra plana é tratar como maluco e excluir ainda mais. Reforçando a impressão que eles possuem de si mesmos na sociedade. Quando alguém que já está fugindo da rejeição, encontra alguém dizendo que é um maluco, a vontade de pertencer ao grupo que o ouve e respeita segue maior.
A forma como tudo isso acontece é simples e muito sutil, mas percebemos que não é de aula de ciência que os conspiracionistas precisam, mas de alguém que demonstre que fora daquele universo maluco, a pessoa também será aceita e respeitada.
E o mais triste é que abraçar esse apoio dentro de conspirações podem trazer danos imensos, sustentados pelo mesmo padrão de negação de autoridades e reforço de grupo. Porque infelizmente quem acredita na terra plana por estes motivos, acaba acreditando em ideias antivacina e até governos extremistas autoritários.
Quando sentimos que o mundo está estranho e muito agressivo em nossa direção, tentamos nos esconder em bolhas que reafirmam nossas crenças. O barulho de quem não concorda consegue ofuscar o problema, mas ele acaba sendo alimentado em silêncio, até que ressurge ainda maior.
No fim, pessoas acabam morrendo simplesmente porque alguém queria apenas se sentir menos excluído num mundo cada vez mais estranho.
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