Na série documental "Extermine todos os brutos" o autor (Sven Lindqvist) do livro do mesmo nome fala para o narrador:
"Você já sabe o bastante. E eu também. Não é conhecimento o que nos falta. O que nos falta é coragem para entender o que sabemos e tirar conclusões".
Ouvi essa frase em um domingo de chuva que sucedeu uma semana que devastou minha alma. Sei que não foi só a minha. Essa foi uma semana difícil para ser mulher e isso, por si, diz muito (já que não existem semanas fáceis).
Admito que, junto de quase todas as mulheres que eu admirava por fazerem isso, perdi muito do tesão em escrever e debater publicamente sobre questões do existir feminino. A recorrência dos temas me importa menos do que o tom que isso tomou. Mas, também admito, em alguns momentos me falta coragem para olhar para as minhas conclusões (tou cansada de tretas e agressões, sabe).
Por exemplo, às vezes falta coragem de ver que nosso maior desejo ainda é não ser associadas com uma ameaça ao feminino (feias, agressivas, insubordinadas) e ao status quo como um todo, do que empreender esse caminho e essa busca.
Porque realmente é uma demanda constante e cansativa tentar distinguir quem somos de alguns processos (como a beleza e a aceitação) nos quais estamos inseridas e que, a princípio, parecem tornar a vida melhor.
Soma-se a isso a falta de perspectiva imediata de melhora absoluta, que vai de encontro com o mundo no qual vivemos onde tudo é imediato e absoluto. Temas revoltantes são levantados e, em menos de um mês, ou viram um produto que toma todas as prateleiras ou viram mais uma forma de culpar as mulheres por alguma coisa.
Tudo é muito simples, absoluto e imediato. Mas nada é, na verdade.
Mais ou menos como no caso do #EleNão, onde a gente viu um levante feminino que tomava massivamente pra si, pela primeira vez de maneira real, questões da política partidária virar o grande culpado pelos homens brancos serem, essencialmente e em sua maioria, fascistas (e votarem no atual presidente). Ao mesmo tempo que vimos a questão da insubordinação feminina virar linha de batom vermelho.
E o que ganhamos com isso? Ganhamos um mundo que progressiva e passivamente cada vez mais aceita discursos misóginos como algo que "tem lá seu sentido". Deixo claro que não acho que chegamos nesses discursos do nada, sinceramente. Menos ainda acredito, como acreditava anos atrás, que muito disso era uma resposta orgânica ao crescimento do nosso barulho.
Agora quando eu olho pro debate que diz respeito às mulheres é muito claro pra mim que ele é pautado por uma estratégia que sequer é só brasileira e que sequer visa só esse ou aquele cargo eletivo. Essa estratégia visa basicamente se tornar ~a realidade~ e pra isso precisa do apoio das nossas mentes, bocas e imaginários. Do nosso olhar de horizonte. De não ver ou ver saídas cada vez mais próximas de mudança nenhuma. Isso vale muito mais que esse ou aquele cargo, apesar de facilitar pra eles também.
Como os novos fascistas diriam, uma ~guerra cultural~, mesmo.
Essa ~estratégia de guerra~ durante muito tempo usou - e ainda usa - a brutalização das mulheres como uma das portas de entrada para a brutalização como um todo.
Mas às vezes falta coragem pra encarar que ela usa discursos machistas e misóginos para isso porque estão entre os discursos mais tolerados e maleabilizados.
Pior: isso também tem feito com que a gente se perca nos nossos próprios ruídos e acabe ignorando o conhecimento produzido por mulheres que vieram antes de nós pra abraçar esse eco de cuspe de homens feios.
Por exemplo: essa semana vi o vídeo de uma mulher explicando sua origem social para defender que não era "patricinha" ao ser acusada de ser rica demais para poder fazer um desabafo sobre um violência sexual que sofreu, já que o cara que ela disse que praticou essa violência era um homem que aprendemos a olhar como aliado.
Às vezes falta coragem pra encarar o fato de que não existem aliados, de fato.
Antes de pensar que precisamos com urgência retomar a compreensão de violência de gênero acho importante lembrar, aqui: pessoas que a gente não gosta também sofrem violências. Independente de qualquer coisa, as dores e lutas de ninguém estão submetidas às nossas réguas pessoais. Isso por um motivo bem simples: violências não são atos de merecimento. E quando agimos assim estamos ecoando o cuspe e reforçando uma ideia que foi expressa pela já célebre frase do misógino presidencial que diz: "você não merece ser estuprada".
Às vezes falta coragem pra encarar o fato de que o pensamento misógino guia inclusive as formas com que algumas vezes buscaremos a aceitação masculina.
Inclusive, quando paro pra pensar sobre esse tipo de coisa me falta muita coragem pra olhar pro fato de que nós mesmas, mulheres instruídas e na luta por dignidade, estamos reforçando esse poder e esse controle de narrativa que falei acima.
Ecoando esse cuspe de homem feio.
Como a gente faz isso? Quando a gente ignora que o ódio contra mulheres afeta todos os tipos de mulheres. O aumento da vulnerabilidade se dá pela soma de outros fatores mas esse fator estará sempre presente.
Ou, como resumiu muito diretamente minha amiga Sueli: não é uma competição.
Quero dizer, o fato de uma mulher indígena ser muito mais suscetível não quer dizer que eu nunca sofri violência de gênero (antes fosse). Nem o fato de existirem brutalidades imensas, como a manutenção de uma criança sob tutela do estado para parir, quer dizer que outras formas de violência não importam ou não existem.
Essa questão de hierarquizar violências também vem um pouco do fato de que estamos sendo metralhadas e metralhados constantemente por brutalidades o que, como disse Sontaga, vai nos dessenbilizando.
Por exemplo, a questão de como usamos o termo privilégio. Não tem jeito melhor de notar que disponibilizamos nosso imaginário como facilitador de brutalidades porque quando vamos descendo a régua do que é um privilégio (ou seja, regalia, vantagem) vamos ajudando a normalizar um viver que está, cada vez mais, virando apenas sobreviver.
Pra finalizar, acho importante dizer que não concordo com a vibe de não saber para ser feliz (isso, sim, um privilégio, conseguir não sofrer dores em um mar de tristeza). Conheço muita gente que defende posturas de negação e/ou ignorância como parte de um caminho de elevação espiritual e até intelectual. Vou dizer no que eu acredito: em adonar-se das coisas que nos importam pra que elas sempre tenham um guardião enquanto vivermos e pra que elas também nos guiem em meio aos horrores pelos quais somos assombrados diariamente. Sabe? Lembrando do nosso compromisso, nos botando no prumo.
Alguns dos meus temas são: conhecimento livre, dignidade das mulheres, grego, etc. Eu passo meus dias tentando aprender tudo que consigo lendo pessoas mais inteligentes do que eu. Mesmo assim to muito longe de saber o que queria sobre eles e nem sempre é porque me falta ler mais um livro, adquirir mais conhecimento (no caso do grego, é). Muitas vezes é porque me falta coragem de olhar, entender e aceitar as conclusões que o conhecimento me dá.
(agora se tem uma coisa que considero um aprendizado é isso que me disse, uma vez, uma mulher mais inteligente do que eu: luta, luta mesmo, não torna ninguém mais popular porque luta, luta mesmo, nos obriga a ter coragem e não falar nem fazer só o que querem que a gente fale e faça)
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