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N E W S L E T T E R # 2 9

Os Nomes do Mundo

Há poder no nome das coisas. Em dar nomes às coisas, e em saber os nomes que têm. É um poder que se estende muito para além da classificação e categorização dos mundos que calcorreamos, ofegantes; E que se estende para além da sua etimologia, das suas funções linguísticas, líricas ou burocráticas.

Nos períodos de confinamento recentes, não havendo cafés abertos - essas vitais instituições tão críticas para a nossa sobrevivência - a Neide e eu ganhámos o hábito de descer ao Jardim de Santa Clara, junto do qual moramos, que passámos a chamar, em tom de gozo, o “nosso quintal”. De café ou caneca de chá em riste, éramos os seus únicos habitantes, à parte do ocasional cão (e correspondente ser humano). Lá, sob o primeiro sol da manhã, ficávamos a estudar a rotina dos pássaros, que na ausência de gigantes peludos e barulhentos a espezinhar o seu terreno de caça, tratavam de seus afazeres com um raro à vontade.

Os melros, normalmente treinados com a furtividade de um ninja, movendo-se nas sombras ao canto do olho, como se estivessem sempre numa missão secreta da maior importância, ganhavam terreno, de dia para dia pareciam ser mais. Logo pela manhã pescavam da terra húmida minhocas azaradas, com uma destreza fatal - raramente falhavam. Não sei se eram os meses de isolamento e ansiedade, mas a cena era hilariante (talvez não tanto para as minhocas). Os melros são aves de uma seriedade tremenda; ou pelo menos acham que são.

Conheciam os cantos e recantos, as sombras para onde bater em retirada estratégica, os ramos, as folhas, as bagas, as correntes de ar e a terra que pisamos bem melhor que nós, gigantes ruidosos e deselegantes, que constroem caixinhas empilhadas onde discutem uns com os outros; mais estranho ainda, sem nunca apreciar uma boa minhoca.

Nisto, vendo os melros, comecei a ver mais: mais aves que nunca antes tinha visto nem em Lisboa nem noutro qualquer lugar, árvores, flores e plantas em que nunca tinha reparado, no pequeno jardim onde vou quase todos os dias. Reparei num passarito algo cómico, com uma mascarilha branca em torno dos olhos e peito negro, agitando para cima e para baixo a cauda comprida e listrada. Discreto, e veloz, juntava-se aos melros na vida movimentada do jardim, excepcionalmente desocupado - com a excepção de dois artistas esquisitíssimos, e repletos de olheiras, que se punham a rir a olhar para os pássaros, claramente insanos.

Fig.1 Manhã Invernil no Jardim de Santa Clara (em Lockdown), 2021

Esta ave era uma Alvéola-Branca. Nunca tinha visto uma. Desde então, vejo-as todos os dias, e tendo um nome, deixaram de ser apenas pássaros. Curioso, decidi aprender o nome de mais pássaros, e como que por magia, comecei a vê-los por toda a parte. Como se um véu escondesse uma dimensão do mundo onde os pássaros sempre estiveram: Papa-moscas, Gaios, Poupas, Carriças, Piscos-de-Peito-Ruivo e até Garças-Reais, tudo num raio próximo de minha casa. Revelaram-se as faias, choupos e cerejeiras, os jasmins, madressilvas e buganvílias, onde antes havia apenas um sítio qualquer, como qualquer outro sítio.

Conta a história que quando os primeiros navios portugueses chegaram à costa do Brasil, os Índios não reagiram, não os atacaram: era como se nem sequer os vissem no horizonte. As nossas naus excediam de tal forma o seu conhecimento, imaginação, espectro daquilo que era possível, que os enormes navios lhes eram invisíveis, no primeiro contacto. Como se os tapasse um véu, semelhante ao véu que escondia de mim todos os pássaros e árvores que me rodeavam. Um véu que quando levantado, raramente volta a descer sobre nós.

Há poder no nome das coisas: em sabê-lo, e em dá-lo. Não é um poder meramente utilitário, e raramente ajuda à sua compreensão. É o poder de nos fazer ver o invisível; de detectar as notas de perfumes que antes nos pareciam todos o mesmo; de ouvir melhor as canções que nos vêm do cimo das árvores; de tornar raro aquilo que nos parece vulgar, de tornar único o que nos parece repetitivo, de tornar próximo o que nos é estranho - é mais difícil cortar um carvalho, do que cortar uma árvore; mais incrível que tudo, de fazer existir o que não existia.

Nada é novo debaixo do sol, mas são muitas as coisas para as quais ainda não temos nome, bem como as coisas cujo nome já esquecemos. Não são poucos os mundos ocultos se escondem sob a membrana ténue do que nos é real, e os véus opacos que os escondem são surpreendentemente leves, e fáceis de romper: seja por pegar numa barra de carvão, e numa folha de papel, e desenhar um sítio qualquer - ou por estar fechado o café onde vamos habitualmente, pela manhã.

Se tiverem comentários, críticas ou elogios (de preferência) a fazer, convido-vos a responder a este e-mail. Até para a semana!

— Simão Martinez, um nome entre muitos.

Secção Acervo

Todas as semanas menos esta, obras que estão perdidas pelo atelier

Aviso

RGB s/píxeis, 2021

Y x Z cm - Indisponível (a menos que queiram uma print)

www.simaomartinez.com

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