Há poder no nome das coisas. Em dar nomes às coisas, e em saber os nomes que têm. É um poder que se estende muito para além da classificação e categorização dos mundos que calcorreamos, ofegantes; E que se estende para além da sua etimologia, das suas funções linguísticas, líricas ou burocráticas.
Nos períodos de confinamento recentes, não havendo cafés abertos - essas vitais instituições tão críticas para a nossa sobrevivência - a Neide e eu ganhámos o hábito de descer ao Jardim de Santa Clara, junto do qual moramos, que passámos a chamar, em tom de gozo, o “nosso quintal”. De café ou caneca de chá em riste, éramos os seus únicos habitantes, à parte do ocasional cão (e correspondente ser humano). Lá, sob o primeiro sol da manhã, ficávamos a estudar a rotina dos pássaros, que na ausência de gigantes peludos e barulhentos a espezinhar o seu terreno de caça, tratavam de seus afazeres com um raro à vontade.
Os melros, normalmente treinados com a furtividade de um ninja, movendo-se nas sombras ao canto do olho, como se estivessem sempre numa missão secreta da maior importância, ganhavam terreno, de dia para dia pareciam ser mais. Logo pela manhã pescavam da terra húmida minhocas azaradas, com uma destreza fatal - raramente falhavam. Não sei se eram os meses de isolamento e ansiedade, mas a cena era hilariante (talvez não tanto para as minhocas). Os melros são aves de uma seriedade tremenda; ou pelo menos acham que são.
Conheciam os cantos e recantos, as sombras para onde bater em retirada estratégica, os ramos, as folhas, as bagas, as correntes de ar e a terra que pisamos bem melhor que nós, gigantes ruidosos e deselegantes, que constroem caixinhas empilhadas onde discutem uns com os outros; mais estranho ainda, sem nunca apreciar uma boa minhoca.
Nisto, vendo os melros, comecei a ver mais: mais aves que nunca antes tinha visto nem em Lisboa nem noutro qualquer lugar, árvores, flores e plantas em que nunca tinha reparado, no pequeno jardim onde vou quase todos os dias. Reparei num passarito algo cómico, com uma mascarilha branca em torno dos olhos e peito negro, agitando para cima e para baixo a cauda comprida e listrada. Discreto, e veloz, juntava-se aos melros na vida movimentada do jardim, excepcionalmente desocupado - com a excepção de dois artistas esquisitíssimos, e repletos de olheiras, que se punham a rir a olhar para os pássaros, claramente insanos.