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N E W S L E T T E R # 3 0

O Interminável Indeterminável

Até a entropia tem as suas regras.

O meu avô João Carlos, materialista e positivista como é, sempre me garantiu a prova do determinismo a um nível cósmico. Sendo químico e farmacêutico, tem experiência na utilização das constantes do universo. É possível determinar o resultado de uma determinada reacção, se a fórmula for seguida com infalível rigor. Reacções anómalas e inesperadas, produtos imprevisíveis ou aparentemente aleatórios, não provam nada senão a nossa ignorância. O determinismo mantém-se: nós é que, afinal, não conhecíamos todas as forças que estavam em jogo. Tudo aquilo que achamos ser nosso: os nossos gostos, experiências, sensibilidades, idiossincrasias e criações, tudo isso era inevitável, tudo isso está já escrito na fórmula inefável do tempo: o que fomos, o que somos e o que vamos ser. Tudo isso previsível para uma inteligência de magnitude suficiente, inconcebível pela nossa.

Já a minha avó Vitalina defende com unhas e dentes a independência da volição, a liberdade dentro do génio e a resistência ao absolutismo cosmológico oferecida por este fenómeno misterioso, e com tanto ainda por explicar, que é o da consciência. Esta continua a ser extensamente debatida, por filósofos, psicólogos e neurologistas, e até agora ninguém encontrou uma solução completa para as particularidades desta propriedade - que não parece sequer ser exclusivamente humana, para grande desgosto de um tal Descartes. Estamos tão acostumados ao modus operandi das máquinas com que brincamos, que pensamos na consciência como mero subproduto da inteligência, uma coisa anómala e bizarra, um erro da gelatina descolorida que temos atrás dos olhos.

Parecemos estar confiantes que a consciência se confina ao nosso centro de processamento, mas não poderá ser que é algo que de nós se projecta para fora, para o exterior, como os estalidos de sonar de um morcego, reflectindo a forma das coisas, tocando o mundo e devolvendo-nos o seu eco parcial? Será que está assim tão contida na nossa matéria cinzenta, ou será que existe também fora de nós, que toca outras ondas, outros impulsos de sonares, outras consciências por aí? Quantas vezes não atendemos o telefone a um amigo e dizemos: “Epá, estava mesmo a pensar em ti agora!”.

Fig.1 Detalhe de pintura em progresso no atelier, esta semana.

Mais nenhum ser vivo é forçado a aprender trigonometria, mas suspeito que muitos tenham alguma forma de consciência, ainda que não façam contas de cabeça; e quando vistos como parte integrante de uma enorme rede bioquímica, de uma complexidade que excede a de qualquer concepção nossa, pergunto-me se somos sequer seres, ou se somos apenas célula, parte de um ser ou consciência maior, uma breve sinapse na enorme mente que é a vida neste planeta.

Mas mesmo isto, para o cosmologista impiedoso, não vai em contrário de que tudo está, sempre esteve, e sempre estará, pré-determinado. Tudo aquilo que achamos ser inovador, estava na verdade já previsto, a soma de tudo o que a esse momento levou. As possibilidades de divergência do destino que nos foi incumbido desde o nascer violento da realidade parecem ser nulas, e as forças que o movem, irresistíveis. Não temos poder. Mas - e então? Sou apenas uma consequência, um produto, um autómato do destino? Provavelmente. E então? Quer um gato ser mais do que um gato? Não estará perfeitamente satisfeito sendo um gato, condenado a ser fofo, receber festas constantes, fazer sestas entre sestas e regalar-se em cada pequena nesga de sol? Porque raio é que meti na cabeça que tinha de ser mais do que isso, que tinha de ser mais do que uma coisa no mundo?

Entre determinismo e livre-arbítrio, estou inclinado a acreditar num espaço intermédio. Por alguma razão os meus avós estão juntos há tanto tempo, encontrando no duelo e no diálogo uma medida de estabilidade, porque nem um nem o outro são donos da razão. E há espaço para os dois.

Ilusão ou não, quero coisas, de onde quer que venha esse querer. Crio coisas, mesmo que a minha mão seja mero agente do inevitável. Descubro coisas, mesmo que elas tenham sempre lá estado. Escolho coisas, mesmo que a escolha já esteja tomada de antemão. Se é tudo um teatro, representando o papel que o cosmos, por acaso ou por desígnio (que no fim vai dar ao mesmo) nos atribui, então tenho gosto em estar em palco. E se, no meio disto tudo, somos livres ou não, que tratem os filósofos; tenho, pelo menos, a liberdade para me deixar ou não embrenhar. Porque felizmente, quis o destino que eu fosse artista, e a ilusão o meu ofício.

Se tiverem comentários, críticas ou elogios (de preferência) a fazer, convido-vos a responder a este e-mail. Até para a semana!

— Simão Martinez, autómato com ideias a mais

Secção Acervo

Todas as semanas, obras que estão perdidas pelo atelier

Aviso

RGB s/píxeis, 2021

70 x 50 cm - Disponível (Reverte a favor do que o destino quiser)

www.simaomartinez.com

Copyright (C) 2021 Simão Martinez. All rights reserved.

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