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N E W S L E T T E R # 3 2

Insuficiente

Por detrás de cada sucesso diz-se existir uma quantidade exorbitante de falhanços. Não tem havido avenida da minha vida mais cheia destes do que a minha carreira artística. Não sou particularmente desafortunado: vivo com uma artista e conheço muitos outros, e sei bem que as coisas são duras, mesmo (e por vezes particularmente) para os melhores entre nós.

Eu sempre funcionei muito à base de porrada, emocional na sua maioria. Desenho bem, primeiro, porque adoro fazê-lo, e o faço quase todos os dias desde que nasci, mas também porque nada do que fazia era bom o suficiente, em particular para a minha mãe, outrora a minha maior crítica, agora a minha maior apoiante. E mesmo assim o meu trabalho nunca me parece ser bom o suficiente. Continua a ser o grito furioso de um miúdo que só queria fazer alguma coisa de jeito, que queria que alguém lhe dissesse “Está tudo bem. Já provaste que vales alguma coisa. Podes descansar”. Como ninguém o fez, continuei a treinar, continuei a gritar para o papel até me doerem os nós dos dedos, porque é isso que é necessário para ser um artista digno de respeito, e que se respeita a si mesmo. A dado momento dei-me conta de que ninguém me vai dizer essas palavras entre aspas, não há nenhum patamar marmoreado onde se ascenda, e onde estejam os outros grandes, com um sorriso bondoso, estendendo-me a mão, dizendo - “Bem-vindo. Já és bom o suficiente, podes descansar”.

Continuo a ser rejeitado, para todos os prémios, bolsas, oportunidades que possam imaginar. Estou constantemente a dar o meu melhor, e mesmo assim nunca é suficiente. E com isto tudo o meu trabalho parece melhorar a olhos vistos. Temo que no dia em que tenha sucesso, a qualidade do meu trabalho desça consideravelmente, mesmo que suba de valor. Não seria um caso inédito - antes pelo contrário, atrevo-me a dizer. Mas esta rejeição, esta coisa que me mata, que me torna pobre e me obriga a ter de perder tempo noutras coisas que não a minha arte - talvez seja, numa cruel ironia, coisa vital e indispensável para o meu trabalho. Os melhores mestres que tive foram sempre os mais exigentes.

Sei bastante bem o que é necessário para ser um artista famoso, mas não estou disposto a fazê-lo, na maioria das ocasiões. Teria de ser escandaloso, espampanante, estar constantemente a expor-me, tentar meter o bedelho em todo o tipo de iniciativas, tentar aparecer em todo o lado até que a minha presença se tornasse normal, e toda a gente soubesse o meu nome, acostumados à minha presença - quem não aparece é esquecido. Mas depois pergunto-me, para quem é que eu desenho, para quem é que eu pinto? É para toda a gente, é para mim, é para a minha mãe? Não sei, nem costuma ser produtivo deter-me nesse tipo de perguntas. Por vezes, a conversa que quero ter não é com vocês, mas com os artistas que vieram antes, e os que virão depois. E por vezes olho para a história da arte como uma conversa muito longa, que os artistas têm uns com os outros ao longo dos séculos e milénios, à qual o resto das pessoas tem o privilégio de assistir. Eu só quero dizer a minha parte. Como uma tocha olímpica passada de mão em mão, também o é o brilho nos nossos olhos, um fogo que irradia por entre nós, do qual não somos donos, mas anfitriões.

Fig.1 Estudos para uma instalação recentemente rejeitada. Por enquanto.

Seria presunçoso assumir que esta chama fosse apenas dos artistas. Pode perfeitamente existir a chama eterna da contabilidade, passando de contabilista em contabilista por gerações sem fim - ou qualquer outra vocação sincera.

A sociedade evolui, a história muda, mas pergunto-me se os papéis que desempenhamos mudarão assim tanto. Parece existir uma continuidade ininterrupta no modo como nos tornamos actores, arquétipos, herdeiros de uma tradição do estar perante o mundo. Reunido entre amigos, olho em volta e imagino uma taberna romana há dois milénios atrás - está lá aquele que fala pouco, mas é espertíssimo; o louco que não tem muita sorte, mas põe toda a gente a rir; o pragmático, que já tem casa e um filho a caminho; aquele que bebe um pouco demais, demasiadas vezes; o que anda embrenhado em grandes filosofias e descobertas, sedento de mais sem nunca atingir a iluminação total; E somos os mesmos, os mesmos que construíram as catedrais que hoje são ruínas, os mesmos que com o sangue lavraram os campos que cultivamos, e os que com sangue desenharam as nossas fronteiras. Somos a mesma coisa, e os nossos papéis nunca mudam.

Posso com isto consolar-me, dizer a mim mesmo que as rejeições foram culpa de um júri ignorante ou com interesses próprios à mistura, ou culpa de um país pouco letrado na cultura visual, culpa de mil e uma coisas que decerto têm algum peso na equação. Enfim, uma deliciosa espiral auto-comiserativa. Mas depois, o que tende a acontecer é a minha mão começar a deslizar, de mansinho, para os pincéis que tenho na secretária, como se me dissesse “Ainda há trabalho a fazer. Ainda não és suficiente” - E com razão.

É quando a minha mão assim desliza que me lembro, por fim, como se chegasse a casa vindo de uma longa odisseia, de porque é que escolhi esta vida, e porque é que ainda não desisti: é que adoro este trabalho como mais nada; não há conversa que me fascine mais do que esta, que dura há tanto tempo, e por vezes só estou mesmo bem quando tenho um pincel na mão. Isso sim, é suficiente.

Se tiverem comentários, críticas ou elogios (de preferência) a fazer, convido-vos a responder a este e-mail. Até para a semana!

— Simão Martinez, bicho-da-tinta

Secção Acervo

Todas as semanas, obras que estão perdidas pelo atelier

Auto-Mau-Trato II (8/10)

Óleo s/papel, 2018

12 x 12 cm - Disponível (Reverte a favor de futuras rejeições)

www.simaomartinez.com

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