“Ó filho, as tuas pinturas são bonitas, mas fazes tudo muito escuro, vê-se mal!”
- Queixa comum que a mãe deste artista costuma proferir. Tem alguma razão. E continuo a debruçar-me sobre porque é que esta escuridão me atrai.
Nas sombras somos todos iguais. A nossa sombra é da mesma cor e substância que a de um insecto, uma árvore, uma pedra, uma nuvem ou montanha. E encontramos na nossa sombra a confirmação de que somos uma coisa do mundo, parte do seu relevo como é um insecto, uma árvore, uma pedra, uma nuvem ou montanha. A nossa sombra espera-nos deitada sobre a terra, como estaremos no dia em que deixarmos de ter uma sombra. Nas sombras, não temos idade. Não temos rugas, nem marcas, nem peles descaídas. À nossa sombra interessa apenas que estejamos vivos. Não temos rosto e não temos cor, não temos nada senão o espaço que ocupamos entre o céu e a terra.
Quando preciso de estar só, tendo a procurar um lugar escuro. Lá, todo eu me torno uma sombra, um vulto, e é como se o peso do meu corpo se aligeirasse momentaneamente, e a minha consciência esticasse as pernas de alívio, recompondo-se de uma qualquer violência que me tenha levado a essa escuridão.
Nas discotecas, sob as luzes fluorescentes de azul cobalto e rosas opacos intermitentes, os contornos das nossas caveiras tornam-se mais evidentes, a pele incandescente e sombras demarcadas sobrepõem-se aos detalhes finos e específicos das nossas feições. Também aí me encontro vulto, e também aí encontrava um refúgio no meio do caos. Nos tempos em que ia sair à noite, era essa escuridão o que mais ansiava, muito mais que a música, as bebidas ou as conversas pouco compreensíveis; esse anonimato que por momentos me libertava do peso de ter de ser alguém, porque nas sombras era apenas mais uma sombra, e não tinha de ser mais do que isso.