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N E W S L E T T E R # 3 1

Nem Por Sombras

“Ó filho, as tuas pinturas são bonitas, mas fazes tudo muito escuro, vê-se mal!”

- Queixa comum que a mãe deste artista costuma proferir. Tem alguma razão. E continuo a debruçar-me sobre porque é que esta escuridão me atrai.

Nas sombras somos todos iguais. A nossa sombra é da mesma cor e substância que a de um insecto, uma árvore, uma pedra, uma nuvem ou montanha. E encontramos na nossa sombra a confirmação de que somos uma coisa do mundo, parte do seu relevo como é um insecto, uma árvore, uma pedra, uma nuvem ou montanha. A nossa sombra espera-nos deitada sobre a terra, como estaremos no dia em que deixarmos de ter uma sombra. Nas sombras, não temos idade. Não temos rugas, nem marcas, nem peles descaídas. À nossa sombra interessa apenas que estejamos vivos. Não temos rosto e não temos cor, não temos nada senão o espaço que ocupamos entre o céu e a terra.

Quando preciso de estar só, tendo a procurar um lugar escuro. Lá, todo eu me torno uma sombra, um vulto, e é como se o peso do meu corpo se aligeirasse momentaneamente, e a minha consciência esticasse as pernas de alívio, recompondo-se de uma qualquer violência que me tenha levado a essa escuridão.

Nas discotecas, sob as luzes fluorescentes de azul cobalto e rosas opacos intermitentes, os contornos das nossas caveiras tornam-se mais evidentes, a pele incandescente e sombras demarcadas sobrepõem-se aos detalhes finos e específicos das nossas feições. Também aí me encontro vulto, e também aí encontrava um refúgio no meio do caos. Nos tempos em que ia sair à noite, era essa escuridão o que mais ansiava, muito mais que a música, as bebidas ou as conversas pouco compreensíveis; esse anonimato que por momentos me libertava do peso de ter de ser alguém, porque nas sombras era apenas mais uma sombra, e não tinha de ser mais do que isso.

Fig.1 O artista e a sua sombra. Fotografia da Neide Carreira.

Nos meus tempos de praticante, quando rezávamos em grupo, em capelas mal iluminadas, o resto dos corpos que me rodeava era igual ao meu, os rostos revelados pela radiância de velas ou de uma fogueira adquiriam um carácter estranho e infamiliar: os traços que deles conhecia esvaíam-se no seu tremeluzir. Pareciam os rostos de outras pessoas, e pareciam todas iguais, todas uma só pessoa. E parecíamos cantar com a mesma voz.

Numa visita nocturna à Penascosa, em Foz Côa, enquanto o guia guiava o nosso grupo por entre diversos núcleos de gravuras rupestres, eu olhava em volta e via apenas os vultos dos outros grupos em torno das lanternas. Nesse momento apercebi-me que podia estar no vale de há vinte mil anos, olhando para os vultos de quem estava em torno da fogueira, observando e tocando os mesmos rochedos, rodeados pela mesma paisagem e relevo, partilhando a mesma humanidade, o mesmo corpo e os mesmos sentidos, sob o mesmo céu densamente pontilhado.

Desde aí, tenho trabalhado de forma constante na minha série de desenhos “Procissão”, um trabalho que vai sempre continuar mesmo que me aventure por outras linhas.

Ao longo de toda a minha vida, tenho encontrado o meu mais sagrado templo tanto em discotecas, como em capelas, como nas sombras do Vale do Côa. Provavelmente, porque sinto sempre esta sede de saber não ser ninguém, de saber ser uma sombra entre muitas, e da paz que aí existe. Porque nas sombras somos carne feita passado, presente e futuro. Na escuridão vêem-se mal umas coisas, e vêem-se melhor outras.

Se tiverem comentários, críticas ou elogios (de preferência) a fazer, convido-vos a responder a este e-mail. Até para a semana!

— Simão Martinez, autómato com ideias a mais

Secção Acervo

Todas as semanas, obras que estão perdidas pelo atelier

Reunião II (Foz Côa)

Litografia s/ papel, Edição de 6+1 prova de artista, 2017

70 x 50 cm - 2 exemplares disponíveis (Reverte a favor da minha sombra)

www.simaomartinez.com

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