Copy
Consultar o arquivo de newsletters
N E W S L E T T E R # 3 4

Entre Sonhos (Parte 1)

Há qualquer coisa no desenhar e no escrever que funciona como uma espécie de arpão: trespassa e captura aspectos do mundo dentro de nós - ideias, sensações, estados de consciência - e fixa-os na nossa memória de um modo intenso e peculiar.

Há lugares que só em sonhos recordo, e como se a estranheza disto não bastasse, há lugares que conheço apenas de outros sonhos, que se mantêm os mesmos de um sonho para o outro, separados apenas pelos dias, e por vezes anos, entre sonos. A determinada altura da minha vida, vi-me obrigado a começar a mapear este território - na esperança de, com o devido treino, poder começar a registar com maior detalhe os lugares e caminhos que em sonhos percorro, e onde em sonhos apenas retorno.

Infelizmente, só posso exercer o meu trabalho de cartógrafo onírico numa pequena janela de tempo: assim que acordo, antes da memória do sonho se evaporar para todo o sempre. Nesse estado, em que ainda me lembro bem das imagens, dos percursos e dos encontros que sonhei, consigo aceder à memória de outros sonhos, que fora deste torpor ensonado estão fechados a sete chaves. Como tal, passei a ter sempre à mão um caderno de sonhos, onde registo furiosamente tudo isto, enquanto o dia não começa e devora o que a noite fez.

Para qualquer outra pessoa, os meus diários de sonhos são na sua maioria uma cambada de gatafunhos hieroglíficos, mas para mim, curiosamente, parecem ser a chave para que me lembre detalhadamente dos sonhos, muito depois de os ter tido. As propriedades mnemónicas do desenho sempre me foram evidentes desde pequeno: passava as aulas todas a fazê-lo! E não sei bem como, ao olhar para esses desenhos mais tarde, lembrava-me dos sons, daquilo que estava a ser dito, da luz que entrava na sala, dos incómodos e desconfortos, das risotas, e, por vezes, até da matéria leccionada. Dava jeito.

Fig.1 - Registos de um sonho deste Agosto

Na primeira grande viagem que fiz sozinho (sem adultos), enchi dois diários gráficos com os desenhos dos lugares onde, mais por acaso que por desígnio, acabava por ir parar. Saíamos nas estações de comboio um pouco ao calhas, por vezes motivados apenas pela vontade simples de fazer corresponder um nome a um sítio. Olhando para esses desenhos, sou transportado para memórias de invulgar frescura, saturadas de detalhes, e intensas como um trauma, que quando emerge à superfície, parece ainda estar a acontecer.

Ao escrever isto pareço dotado de uma memória excepcional. Não me parece ser o caso. Raramente me lembro de nomes e de caras com precisão (talvez por isso seja um péssimo retratista). Não sei de cor a letra de nenhuma canção, não consigo decorar praticamente nada, por vezes nem me lembro que idade tenho, ou do que almocei antes de ontem.

Com decerto já mencionei, desenhar, para mim, foi muito mais um um modo de entender, do que de representar ou de ver. Ao desenhar somos obrigados a imaginar como é que as coisas se sustêm, como se mantêm fixas no chão, como suportam a sua massa e peso, e como o passar do tempo as molda. E quando conhecemos bem alguma coisa, raramente nos esquecemos dela. Desenhar o que vivo é, portanto, conhecê-lo de uma forma aprofundada, como se os meus olhos não fossem apenas meus, como se fosse actor e espectador no mesmo instante; e a escrita é também um acto que requer essa dualidade, o que por vezes promove uma hiper-consciência alienante.

Do mesmo modo, escrever e desenhar os sonhos, por pobre que seja a caligrafia e qualidades gráficas, fê-los ficar guardados em mim tão vívidos quanto as viagens que desenhei de mochila às costas.

P.S: Peço desculpa pela demora nesta newsletter. Não ando a dormir as horas que devia. Mas não se preocupem: a segunda parte vem já esta sexta-feira - se os sonos mo permitirem. E já que falamos em sonhos, inaugurou semana passada a exposição Somnium et Mirabilia, no belíssimo Museu Arqueológico do Carmo, o mesmo lugar onde há quatro anos atrás comecei a minha vida de artista, com que durante tanto tempo sonhara. Recomendo que vão visitá-la, e leiam com atenção o que escreve a curadora da exposição

Até para a semana!

— Simão Martinez, escritor soporífero

Secção Acervo

Todas as semanas, obras que estão perdidas pelo atelier

15 x 20 cm - 230€ (reverte a favor dos meus sonhos)

www.simaomartinez.com

Copyright (C) 2021 Simão Martinez. All rights reserved.

Update Preferences | Unsubscribe

Email Marketing Powered by Mailchimp