Há qualquer coisa no desenhar e no escrever que funciona como uma espécie de arpão: trespassa e captura aspectos do mundo dentro de nós - ideias, sensações, estados de consciência - e fixa-os na nossa memória de um modo intenso e peculiar.
Há lugares que só em sonhos recordo, e como se a estranheza disto não bastasse, há lugares que conheço apenas de outros sonhos, que se mantêm os mesmos de um sonho para o outro, separados apenas pelos dias, e por vezes anos, entre sonos. A determinada altura da minha vida, vi-me obrigado a começar a mapear este território - na esperança de, com o devido treino, poder começar a registar com maior detalhe os lugares e caminhos que em sonhos percorro, e onde em sonhos apenas retorno.
Infelizmente, só posso exercer o meu trabalho de cartógrafo onírico numa pequena janela de tempo: assim que acordo, antes da memória do sonho se evaporar para todo o sempre. Nesse estado, em que ainda me lembro bem das imagens, dos percursos e dos encontros que sonhei, consigo aceder à memória de outros sonhos, que fora deste torpor ensonado estão fechados a sete chaves. Como tal, passei a ter sempre à mão um caderno de sonhos, onde registo furiosamente tudo isto, enquanto o dia não começa e devora o que a noite fez.
Para qualquer outra pessoa, os meus diários de sonhos são na sua maioria uma cambada de gatafunhos hieroglíficos, mas para mim, curiosamente, parecem ser a chave para que me lembre detalhadamente dos sonhos, muito depois de os ter tido. As propriedades mnemónicas do desenho sempre me foram evidentes desde pequeno: passava as aulas todas a fazê-lo! E não sei bem como, ao olhar para esses desenhos mais tarde, lembrava-me dos sons, daquilo que estava a ser dito, da luz que entrava na sala, dos incómodos e desconfortos, das risotas, e, por vezes, até da matéria leccionada. Dava jeito.