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N E W S L E T T E R # 3 3

À Janela

O tilintar de vozes e copos indistintos é para os meus ouvidos o que a minha cama é para as costas - enche-me, aconchega-me, envolve o meu corpo e livra-me do seu peso, inebria-o de som, de vida e de uma luz áurea, e depois…

Chego a casa em silêncio. A estas horas os meus passos soam como os de um gigante, cortando em staccato o sossego fúnebre do meu bloco residencial. A luz por entre as arcadas é fria e estranha, e até as pedras da calçada parecem mergulhadas num sono perturbável apenas pelo meu andar, e depois…

Ralo uma raiz de gengibre, olho em volta para as manchas de café e molho de tomate na bancada baça, para as juntas entre os ladrilhos que digo a mim mesmo que tenho de escovar, para voltarem a ser brancas. A chaleira de plástico resmunga, cada vez mais irrequieta. Num único movimento fluido e bem ensaiado, tiro-a da base, encho a caneca sem um salpico - “arrumo isto amanhã”, digo para mim mesmo em voz de sussurro - e depois…

Tenho quinze anos, são sete da manhã e tomo o pequeno-almoço sozinho, em casa do meu avô Arménio. Ainda é noite cerrada. Ele levanta-se às três da tarde, e quando janta já eu fui dormir - mal o via nessa altura. Foi nesta manhã que uma profunda solidão, como nunca tinha saboreado, me deu a conhecer o aperto gelado das suas garras pela primeira vez. Ponho dois charros no microondas, um para o intervalo das dez e meia, e outro para a seguir às torradas, e depois…

Já passa da meia-noite e abro a janela do atelier, treze anos mais tarde. Não há gengibre, acabou-se na terça mas por sorte a cafeteira italiana ainda lá tem um resto de descafeinado. As luzes quentes e os tilintares, burburinhos e gargalhadas, produzem, como o vinho, uma certa toxicidade - só pode ser de vez em quando, porque torpores já os tive que chegue, e é preciso arejar. Abri demais a janela e o gato investiga tentativamente o parapeito, para meu terror instantâneo. A realidade de morar num 13º andar rapidamente se lhe torna evidente, e após intensa deliberação, recua. Pego de novo no caderno, a brisa ainda veraneante sopra-me como veludo, e depois…

Grito em silêncio para a minha almofada, esmurro-a violentamente até queimar os nós dos dedos com o atrito, a ferver de uma fúria negra como alcatrão, que só quero que passe, que só quero que passe, só quero esmurrar até não ter mais fôlego, para não ter escolha senão sucumbir à exaustão, porque nunca mais passa, porque sei que isto passa, até agora passou sempre, e depois…

Na pequena capela do último andar da paróquia do Campo Grande, o padre Vítor fala connosco, numa espécie de missa informal. Nunca tinha estado tão perto dele, parecia um gigante, o momento parecia mais importante, a homilia mais pessoal e íntima que a da missa das dez alguma vez soara. Voltávamos de um retiro, profundamente contemplativos, sentados de pernas cruzadas na alcatifa verde-escura, sob uma meia luz cálida, e depois…

Está tudo bem. Pagaram-me finalmente o trabalho que entreguei no mês antes, e agora ando e sinto-me agora como um grande latifundiário - comprei cogumelos Portobello e tudo! Penso em mariná-los com vinagre balsâmico e vinho branco, fritá-los com cebola caramelizada e uma quantidade absurda de alho, juntar parmesão e queijo ricotta, e depois…

A dada altura, no momento mais catártico do filme, tudo fez sentido. As peças desconjuntadas da minha vida, por um breve instante, pareciam todas encaixáveis, num longo e profundo uníssono harmónico, nada estava mal nem estava bem - tudo parecia antes imbuído de uma certeza misteriosa, e depois…

E depois vou ter fome outra vez, e depois tenho quinze anos outra vez, e vinte e oito, e oitenta, e cento e vinte e duzentos. Depois vou ter estar embrenhado nos vapor de jantaradas, no doce fulgor da companhia, até ansiar pela frescura da solidão a entrar pela janela nocturna, em silêncio, e depois ansiar pela luz e pelos ruídos outra vez, para depois estar sossegado, para esmurrar a parede até me sangrarem as mão, para nada me fazer sentido, para estar finalmente em paz, para estar melhor e para estar pior do que alguma vez estive, e depois…

É aqui que eu devia estar, mesmo aqui, precisamente. Porque é que não estou aqui mais vezes? Porque é que me estou sempre a esquecer aquilo que sei que me faz estar bem? Não me posso esquecer outra vez. Não me vou deixar esquecer outra vez, e depois…

Já não estou a fazer nada de jeito, releio a mesma página vezes sem conta, ensonado, mas não quero pousar o caderno, não quero que esta brisa acabe -

- e depois...

Se tiverem comentários, críticas ou elogios (de preferência) a fazer, convido-vos a responder a este e-mail. Até para a semana!

— Simão Martinez, com o seu cabelo à lua

Secção Acervo

Todas as semanas, obras que estão perdidas pelo atelier

Tormenta

Óleo e silicone s/painel entelado, 2018

24 x 30 cm - Disponível

www.simaomartinez.com

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