Estou sentado num rochedo alto. Está escuro, o tempo parece ter congelado naquela escuridão bizarra, que dura apenas alguns minutos, mesmo antes da noite cerrar. Até perder de vista, em todo o meu redor, estendem-se rochas negras, de arestas afiadas como enormes estilhaços. Deixo-me estar durante tempo infindável.
Fogo. Erupções, fogo por toda a parte, uma violência incomparável, um ruído insuportável e que não acaba, o ruído do fender de rochedos e da própria terra, e que parece nunca mais acabar. Permaneço no mesmo lugar. O ruído passou. Agora chove, chove a potes; furiosamente e sem parar, chovem anos a fio, na escuridão, uma medida de tempo impossível de determinar, inconcebível. Continuo sobre o mesmo rochedo. A chuva dura mais umas centenas de anos.
A chuva pára. Estou perante um céu novo, que se abre luminosamente diante de mim, sem nuvens, e a meus pés, lá em baixo, estende-se um oceano de um verde-lima, uma água opaca, densa como uma sopa, num tom que faz lembrar o verde da lagoa do Congro, nos Açores (onde nunca fui). Cobre tudo, não há terra ou rocha visível. Fico ali mais uma eternidade, a olhar para aquelas águas, com a sensação intensa de estarem saturadas de energia, de caos: de que lá dentro, muita coisa está a acontecer.
Volta a chover, mas desta vez já não está escuro. Vejo o nível do mar descer, formando enormes lagoas coloridas, onde para além dos verdes e azuis quase fosforescentes se vêem vermelhos argilosos, e amarelos sulfúricos. Entre as águas, terra, de um ocre amarelado, deserta. Vejo coisas a sair da água, pequenas manchas, coloridas aqui e ali sobre a terra. As lagoas diminuelm com as chuvas, e a paisagem que se estende no horizonte muda de contornos, lentamente, como o respirar nas costas de um animal impossivelmente grande e vagaroso. O relevo sobe e desce, fluido como uma maré. Saindo das lagoas, furando o seu perímetro e as extensões rochosas entre elas, saem pequenos braços de água, que se vão alargando e alargando, racham a pedra no seu caminho como a goiva de um escultor, ao longo de mais uns quantos milénios. Continuo no topo do meu rochedo, impávido e sem pressa.
O ritmo das mudanças começa a acelerar, exponencialmente. Em todo o meu redor a paisagem muda. Ainda há um oceano, sim, lá longe, mas a cor já não é a mesma. A paisagem, outrora de um cromatismo limitado, está agora repleta de verdes, primeiro junto aos rios, e que depois escalam pelos montes acima, cobrindo tudo no seu caminho. As coisas que se mexem mudam, também, mas em comparação com o mover das montanhas, são rápidas demais: mal as vejo. Os vales continuam a alargar, e os rios também. Os seus contornos, outrora aguçados, vão-se arredondado, e eu continuo no topo do meu rochedo, sentado, como estava desde sempre, desde que o céu era negro e tudo à minha volta era fogo. A paisagem continua a sua dança, como se pintasse a si mesma perante os meus olhos atentos, durante uma extensão indefinível de tempo.
Quebrando o meu transe, ouço uma voz chamar por mim. O tempo abranda, volta ao normal. É uma colega de turma - diz-me que os outros estão à minha espera. À minha esquerda, sobre o mesmo rochedo que impera sobre a praia lá em baixo, está uma espécie de café. Levanto-me, e dirijo-me para o pequeno edifício avermelhado, que parecia o café da Quinta das Conchas, vá-se lá saber porquê. E acordei.
Acordei deste sonho, há mais de dez anos atrás, uma pessoa muito, muito diferente da que tinha ido dormir, na noite anterior. Tive a sensação de ter mesmo vivido todo aquele tempo. A sensação de ter os olhos de alguém impossivelmente antigo, que vira o mundo nascer, e, com ternura e atenção, o via seguir o seu curso. Tinha cerca de dezasseis anos, mas este sonho durou, no mínimo dos mínimos, mil. Já tinha tido sonhos longos, mas ainda não há palavras para quanto durou este. Acordei com outra idade.