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N E W S L E T T E R # 3 7

A Última Linha

Quando olho para uma das minhas obras preferidas de todo o sempre, os “Painéis dos Pinheiros” do pintor japonês Hasegawa Tōhaku (1539-1610), a sensação que tenho é de que nenhuma pincelada foi dada a mais, nenhum miligrama de tinta deixado à solta. A mão de Hasegawa parou no microssegundo exacto, e a pintura, quinhentos anos mais tarde, tem ainda aquela frescura de coisa “acabada de fazer”. Para mim, esta precisão é extática, faz-me querer levantar da cadeira, como um andamento de orquestra apoteótico, se bem que silencioso, e enche-me de tanta energia que nem sei o que fazer ao meu corpo gritante. E aposto o que quiserem que Hasegawa não decidiu, de forma racional e consciente, parar naquele momento - ou que pelo menos não tinha inteiramente a noção daquilo que acabara de fazer. Soube ter a sensibilidade infinitamente certeira, de forma consciente ou inconsciente, como um pássaro que desconhece a sua própria elegância, de pousar o pincel no momento perfeito.

Há uma linha que é a primeira, e há uma linha que é a última. Pelo menos no meu caso, a parte mais difícil de fazer arte, a seguir a começar uma obra, é terminá-la. Isto, se não formos preguiçosos - coisa que sou em quase todos os outros aspectos da minha vida, com excepção deste. A meu ver, aquilo que distingue um artista experiente de um talento em bruto é, por vezes, a capacidade de saber parar na altura certa. E chega a ser o que por vezes diferencia, em casos de semelhante capacidade técnica, o talento ou génio (o que quer que isso realmente seja). Não é o estudo da luz e da forma, a profundidade de conhecimento sobre a teoria da cor (embora a falta destes seja dolorosamente evidente), nem tão pouco a aptidão e habilidade no controlo do gesto. Tudo isso é treinável, para tudo isso há medidas, padrões e referências. Nem tudo é subjectivo, embora os nabos gostem muito de o dizer.

Tendo feito já milhares sobre milhares de desenhos, continuo a nunca saber bem quando um trabalho está terminado. Aliás, já tive várias obras em exposição que para quem as viu seriam hoje irreconhecíveis - voltando ao atelier, dei-lhes continuidade, modifiquei cada centímetro quadrado - afinal, não estavam acabadas. O que é mesmo, mesmo difícil, depois dos anos de treino a que nos submetemos, não é executar sombreados perfeitos, construções anatómicas irrepreensíveis, ou uma paleta de cores coesa - embora estes exijam uma aprendizagem contínua. O que se torna mesmo, mesmo complicado, de fazer arrancar cabelos e raiar olhos de vermelho, é sentir que fomos longe demais, que estragámos algo que já estava bom, ou que demos por terminado algo que não estava: que não soubemos parar uma obra no tempo certo, porque cada trabalho tem o seu próprio ponto final.

Por vezes, o movimento de paragem é excepcionalmente orgânico, parece que o meu corpo sabe dizer “chega”: paro, simplesmente, de desenhar, como se me deixasse de apetecer, e sem dar por isso, quando volto a olhar para o que estava a fazer, noto uma resistência subtil, quase imperceptível, que me desencoraja de pegar em qualquer material. Por vezes sabe a preguiça, mas suspeito que essa sensação seja produto da sensibilidade cultivada ao longo das últimas décadas. Creio que esta é a grande vantagem da experiência, ganhamos um sexto sentido semi-consciente e que nos vem naturalmente, sem que o sequer queiramos, ou saibamos justificar.

Fig.1 Hasegawa Tōhaku “Shōrin-zu byōbu” (Biombo dos Pinheiros), c.1595, painel 1/2, Tinta-da-china s/seda, 156 x 356 cm. © Museu Nacional de Tóquio.

Mas há casos em que não é assim. Quem já sofreu de insónias conhece bem os problemas da hiper-consciência e racionalização destes fenómenos orgânicos. Quanto mais penso “adormece!”, menos o meu corpo vai dormir - e a partir do momento em que ganho consciência de que estou a adormecer, acordo. É uma tortura muito especial.

Dar um desenho ou uma pintura por terminados é um suplício equivalente, se bem que menos danoso para a saúde (será?). É uma operação que requer uma delicadeza brusca, como arrancar um penso, ou atordoar uma mosca em pleno vôo; como saber pôr termo a uma conversa antes que toda a gente se aborreça, saber quando beber o último copo de vinho, saber ir embora da casa de alguém antes que os anfitriões fiquem fartos de nós. A experiência ajuda a informar estes gestos, mas só a experiência não chega, porque cada situação é uma situação específica: cada jantar é um jantar, cada conversa uma conversa, tal como cada obra de arte tem o seu próprio fim.

É importante não confundir detalhe com completitude - podem achar que estou aqui a defender o minimalismo, ou coisa que o valha. Algumas das minhas melhores obras (aquelas que gosto mais) foram feitas em poucos minutos, outras ao longo de vários anos. Há trabalhos simples e minimalistas que me parecem excessivos na mesma, ou até incompletos, e o mesmo se aplica a pinturas mais antigas, por vezes a transbordar de maneirismos e ornamentos, mas no entanto em perfeito equilíbrio. Há um dizer que já se tornou corriqueiro nos círculos artísticos, e que todos decerto já ouviram: menos é mais.Oponho-me a esta platitude: menos nem sempre é mais, e mais nem sempre é menos.

Count Basie disse: “a música está nas notas que não se ouvem”. Por isto, entenda-se que é no tempo entre notas, na cadência, nos ciclos de harmonias e dissonâncias, conflitos e resoluções, tensão inaudível entre tom e atonalidade, que está o que nos faz ferver o peito. Sinceramente, acho isto aplicável à pintura, no sentido em que uma ausência de coisas a mais tende a criar uma boa obra, e a sua presença e explicitude excessiva tendem a destruí-la; e são também as tensões e dualidades, entre o caos e o equilíbrio, que nos fazem não conseguir tirar os olhos de uma obra, ou revisitá-la constantemente.

Ao longo da minha vida, vou lutando contra a urgência e a preguiça, o impulso e a inacção, e para cada um deles há sempre um início, e um fim. E não há nada como parar no momento certo. E é apenas quando páro para olhar de longe o que já fiz, que noto que os momentos que nos movem, nos constroem e fazem ruir, têm sempre este gosto metálico e desconcertante, de coisa acabada de acontecer, de uma insatisfação que nos enche as medidas, como a pintura de Hasegawa, perfeitamente incompleta.

— Simão Martinez, em constante paragem

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