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N E W S L E T T E R # 3 6

Hiper-condria

Meus caros, há coisa de mês e meio, pela primeira vez em mais de meio ano, a minha newsletter atrasou-se (e desde então nunca mais saiu a tempo): estive com um febrão terrível graças à vacina do Covid-19. Já não alucinava assim desde a infame gastroenterite de 2008, onde, com quase 43 graus de febre vi, como se de carne e osso, um guerreiro tribal africano, de olhar assassino e lança em punho, coberto de suor, aos pés da minha cama. Tinha lido “As Minas de Salomão” pouco tempo antes.

Todos sabem que tenho um portfólio diversificado de patologias, como qualquer pessoa saudável - um bife de azelhice, numa caminha de depressão, servido com uma redução de procrastinismo caramelizado, regado de surtos de euforia, e acompanhado com tagarelismo excessivo e batatinhas. No entanto, há uma que me aflige mais do que todas as outras, e parece até ser hereditária: a mania das doenças.

Uma vez julguei que tinha um aneurisma, por estar a sangrar da orelha esquerda. Cinco horas mais tarde, nas urgências de Santa Maria, um médico ensonado descobre, para minha eterna vergonha, que se tratava apenas de um arranhão. Outra vez, liguei para a minha mãe a meio da noite a achar que estava a ter um enfarte - tratava-se de azia. Caros leitores, e pessoas para quem esta newsletter é um adorno para a caixa do Spam, tenho uma confissão a fazer-vos: estou doente, com um caso fatal de hipocondria. E para esta, infelizmente, ainda não há vacina.

Parece inofensiva, mas não é: tem o potencial de nos estragar a vida toda. A mente sã, quando deparada com uma ligeira dor de dentes, deixa que passe, ou toma um ben-u-ron. Eu fico dois dias sem dormir, a acreditar fervorosamente que estou com um cancro nas gengivas, e que estou já pejado de metástases até ao mindinho. Culpo em partes iguais: a televisão e internet; as histórias de terror que uma família de farmacêuticos, com amigos médicos, proporciona; o fatalismo tragi-cómico da sociedade portuguesa. Mas distribuídas as culpas, sobra ainda a minha própria parvoíce, que como bem sabem, é inegável.

Este último ano e meio foi repleto de dualidades. Para ser sincero, a pandemia mundial ajudou-me a não pensar tanto em doenças. Decidi fazer o que podia: comer melhor, largar os cigarros (se bem que ainda tenho o electrónico) e fazer desporto com regularidade. Consegui. Ganhei também uma consciência diária de que vou morrer. Todos o sabemos, mas temos algum mecanismo interno de negação que nos permite viver a nossa vida sem estar constantemente a espumar da boca e a berrar algo como: vamos todos morrer! eu vou morrer! tu vais morrer! AARRGHH!!!

Não é agradável.

Fig. 1 Pormenor de desenho em progresso, sanguínea pura s/papel

Mais tarde ou mais cedo, esta verdade apanha-nos, e mais vale ver a flecha chegar do que a sentir cravada nas costas de surpresa. E na minha experiência, quando começamos a viver como se não fôssemos morrer, as coisas tendem a correr mal. Mesmo que limitado, o nosso tempo chega a ser tanto que a memória não o consegue acompanhar por inteiro. Tanto que nem sabemos o que fazer com ele. Percebi que talvez o meu pavor agravado de doenças e maleitas fosse um reflexo deste desassossego que por vezes me recuso a enfrentar. Que o meu medo da morte é tão pior quanto pior é a qualidade da vida. E noto que piora, quando sinto que não estou a aproveitar a vida que tenho. Em 2019 fui tantas vezes parar às urgências com sintomas disto e daquilo, que ponderaram dar-me um passe VIP, para não ter de ficar lá até às 5 da manhã como era hábito. Estava a trabalhar em condições terríveis, sem perspectivas nenhumas, após uma série de falhanços consecutivos, e sem um tostão furado. Mesmo.

Viver em constante receio de que qualquer arranhão marque o início de uma infecção de bactérias devoradoras de carne (esta, por acaso, esteve perto de acontecer), que uma dor de cabeça estranha seja um aneurisma fatal, que qualquer pequena indisposição assinale um fim catastrófico que se aproxima, é uma prisão. Começamos a ter medo do mundo, a temer os campos que fomos feitos para percorrer, os montes que fomos desenhados para escalar. E eu, amante de escalar árvores e montes como sou, não podia mesmo permitir que isto continuasse. Deixei de inventar desculpas para mim próprio. Sabemos ser saudáveis, vivemos numa era em que a informação está toda aqui. Custa-me sair para ir correr os meus 8 quilómetros, dia sim dia não, custa-me fazer jejuns, evitar o álcool e os fritos, amante do tinto e da farinheira como sou, mas custa-me ainda mais viver na sombra das consequências de não o fazer. Para mim, a cura tem sido tentar viver com poucas culpas.

Porque isto de ser hipocondríaco, é o que me põe mesmo doente.

Se tiverem sugestões, críticas ou elogios (de preferència) a fazer, convido-vos a responder a este e-mail. Prometo que vos respondo no prazo de dois anos. Caso contrário, até para a semana!

— Simão Martinez, terror das urgências

Secção Acervo

Todas as semanas, obras que estão perdidas pelo atelier

12 x 12 cm - Disponível (reverte a favor das minhas aflições)

www.simaomartinez.com

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