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N E W S L E T T E R # 3 8

*Lamento a demora, a depressão sazonal e o meu extrato bancário uniram forças para me destruir - mas estou de volta! Achavam que se escapavam? Nem pensar.*

A Grande Loucura, Parte 1:

Casa de Malucos

-“Tirando isso, regula bem!”

Usamos muito esta expressão, na minha família, em tom de brincadeira. Gostamos de usá-la, parece-me, porque conhecemos melhor que a maioria o que é “não regular bem”, e como tal sabemos que toda a gente costuma ter o seu tempero de loucura, variando apenas no grau de funcionalidade vs. disfuncionalidade que conseguem demonstrar. A partir de um determinado rácio, são malucos. Devo muito à minha família, especialmente a ausência do gene da calvície - em contrapartida, o gene da loucura corre em força, com histórias de toda a espécie de bipolaridade, esquizofrenia, depressões, suicídios, psicoses, vícios, e manias obsessivas. Mesmo assim, prefiro não ser careca.

Ainda estou para conhecer a pessoa inteiramente sã, absolutamente normal. Da minha experiência, as pessoas que crêem estar absolutamente sãs, e ser perfeitamente normais, racionais e justificáveis, tendem a ser as mais malucas de todas. E as mais perigosas. Suspeito que se eufemizem bastante as doenças mentais. Mascaradas de paixões, fervores ou humores intensos, suspeito também tenham sido lenha para muita violência ao longo da história: está pejada de líderes completamente loucos, de guerras absurdamente sangrentas sem qualquer nexo, e de bastante incesto, coisa que desconfio estar relacionada com os dois pontos anteriores.

A minha avó Nadir, uma figura gigantesca na vida de todos, sofria de esquizofrenia e doença bipolar, ou maníaco-depressiva, nem sei bem. Sinceramente era novo demais para entender estas coisas, a minha avó era sempre como era - quando somos pequenos a referência da normalidade é mais maleável. Era uma presença implacável, parecia que vivia dentro dela um sol, daquelas pessoas que enchem uma sala só de lá entrar, que levava tudo à frente, punha toda a gente a cantar e a rir. Isto quando estava bem (ou bem demais, no caso das fases maníacas) - mas nem sempre era o caso.

Eu não sofro de nada que esteja oficialmente diagnosticado. Tive sorte. Pelo menos, que eu saiba. Estive a marinar numa depressão bastante violenta há alguns anos, da qual saí apenas mais ou menos - e uma pessoa diferente: quando se abre uma porta na mente, é difícil fechá-la de novo. A minha adolescência foi particularmente aflitiva, agravada por um início que em retrospectiva me parece extremamente precoce nas drogas e no álcool. Devido ao meu historial de família, fui acompanhado por vários psicólogos e psiquiatras, tive a enorme fortuna de ter pais atentos e informados sobre o assunto. Fiquei espantadíssimo quando não me diagnosticaram nada, até mesmo indignado!

Fig.1 “Sopa”, Acrílico e vinil s/tela, 2018

Queria pelo menos uma justificação oficial para os meus problemas. Um papel assinado que dissesse “Este é o teu problema”. Teria sido um alívio. O meu problema, é que estava são, no meio de uma situação familiar que era frequentemente tresloucada e disfuncional. Naquele contexto, o que me estava a pôr doido era a maluqueira dos outros. Quem me conhece sabe que sou um pouco camaleónico - basta-me estar algum tempo com alguém para começar a apanhar tiques da fala, expressões, gestos. Tenho a personalidade de uma esponja emocional amorfa, pelo que me é sempre difícil traçar a minha identidade como uma unidade independente. Para um artista, que supostamente deve ter uma identidade característica, um estilo particular, uma maneira de ver o mundo única, isto torna-se problemático. O chavão do “sê quem és” nunca ressoou muito comigo. Por vezes, quem sou depende de com quem estou, e é-me muito difícil traçar um núcleo, um princípio fundador. Não sei, sequer, se este existe - aliás, desconfio que a ideia de um “ser” central e inviolável esteja fundamentalmente errada; acho-a até redutora.

Sei isto, porque estalei. Numa noite, todo meu ser, feito em pedaços. A certa altura, depois de tanto tempo a querer ser normal e invulnerável, ser um colosso pétreo na tempestade, as forças da natureza levaram a melhor. A verdade é que nunca tinha sido o rochedo que me imaginava. Distraído com o trovejar e as ondulações violentas, não dei pela forma contorcida que a intempérie me obrigara a tomar, nas garras que me haviam crescido, no monstro em que me tornara, incapaz de suster o meu próprio peso.

De algum modo, estou estranhamente grato por ter esta experiência de vida, porque de algum modo é preciso quebrar, porque só quem quebra se sabe construir. É preciso sofrer para entender quem sofre. Neste mundo que construímos, há muita coisa por arranjar, e muitas vezes, são as pessoas partidas que o sabem fazer melhor que ninguém. É preciso quebrar, para se ser inteiro.

Talvez devido a esta minha história, já me cruzei com muitas pessoas ditas problemáticas - primeiro, julguei que era eu um ímane para gente doida - depois percebi que era eu quem as procurava, porque me eram familiares, porque encontrava algo em comum, porque por entre as fracturas e cicatrizes, escapa uma luz com a fúria de um sol, mesmo que fugaz, e arde mais forte que qualquer outra coisa. Entre os picos depressivos, os surtos psicóticos, os ataques de pânico, os gritos de dor, há uma faísca relampejante que quer sair, que quer viver.

Uma faísca que me lembra sempre da luz cálida que inundava a sala quando a minha avó Nadir lá entrava, e até as paredes pareciam ter mais cor, mais vida. Que a minha casa era uma casa de malucos, e só nela é que me sentia bem. Para bem ou para mal, só nela me sentia eu.

— Simão Martinez, um monte de cacos seguros por fita-cola (rasca)

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Todas as semanas, obras que estão perdidas pelo atelier

Grafite, carvão e aguada s/papel - 100€ (preço louco apenas para os leitores fiéis das minhas maluqueiras)

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