Fé fora da Bolha
Alguns salmos seguem um roteiro bastante parecido. Primeiro o salmista vomita toda a sua frustração com o cuidado de Deus, diz que o Protetor de Israel está demorando agir, relativiza o governo soberano do Altíssimo, questiona a justiça divina e duvida da competência de Deus. Já num segundo momento, o suplicante poeta bíblico começa a se desconectar do contexto vigente de profundo sofrimento e volta os seus olhos apenas para o Senhor assentado no seu alto e sublime trono, retomando então uma visão de quem é Deus acima de todas as coisas. Nesta etapa da sua franca conversa com Deus o Salmista louva os atributos do Todo-Poderoso revelados ao longo da história de Israel.
Não somos muito diferentes do Salmista, em nossa bolha religiosa triunfalista temos uma fé inabalável, proferimos frases de efeito que nos dão uma sensação de que temos uma sólida convicção no cuidado de Deus. Mas quando saímos deste universo religioso paralelo e somos confrontados pelas mazelas desta vida, fica evidente a fragilidade desta espiritualidade que não consegue processar os paradoxos da fé. Nem sempre temos a franqueza espiritual do salmista, razão pela qual não verbalizamos a nossa incredulidade na ação graciosa de Deus, preferimos não pensar em Deus fora da bolha espiritual idealizada, damos folga pra Deus de segunda a sábado e nos reencontramos com Ele no domingo, em local sagrado, protegido das interrogações que pairam sobre este mundo mal.
A genuína fé cristã não tem necessidade de se afastar da realidade caótica para sobreviver. Os discípulos de Jesus são aqueles que enfrentam a tragédia da cruz e saem com a sua fé fortalecida no Cristo Ressurreto. Não precisamos fingir que não existe enfermidades, violências brutais, injustiças diversas e tragédias de toda sorte. Tão pouco é preciso colocar Deus no andar de cima a fim de proteger a sua relação com Ele, tal qual um filho que evita os pais pra não dizer uns desaforos. É possível ter fé fora da bolha quando se crê no Deus que suja os pés na lama do sofrimento humano, que chora com os enlutados, que sofre com os oprimidos, enfim, que se fez carne e habitou entre nós experimentando a dor de ser gente.
O próprio salmista, em momento de extrema lucidez espiritual, conseguiu unir a sua visão pura de Deus e a sua condição existencial precária, produzindo uma das mais belas afirmações de fé: "Eu, na verdade, sou pobre e necessitado, mas o Senhor cuida de mim. Tu és o meu auxílio e o meu libertador; não te detenhas, ó Deus meu" (Salmos 40:17).
Rodrigo de Souza
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