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N E W S L E T T E R # 4 0

Queda Livre

Há alguns anos atrás, quando fazia escalada no Algarve, dei uma queda valente. Não foi a primeira vez que quase fui desta para pior, mas estar perto de morrer marca-nos sempre. Caí em pêndulo, o que poderia ter sido fatal. Cair a direito é menos perigoso - a corda é elástica e amortece a descida, e a probabilidade de colisão com alguma rocha mais proeminente é mais baixa - o caminho vertical que escalamos tende a ser relativamente liso, especialmente fazendo escalada em vias já preparadas por outros escaladores. Em pêndulo, não temos controlo, somos como um carregador de telemóvel pendurado pelo um fio - sempre que pego num, ele tende a bater em pelo menos três peças de mobiliário. Num momento estava na parede, no seguinte estava de pernas para o ar, trinta metros abaixo de onde estava. Por milagre, saí apenas com uma entorse no pé, e não com a cabeça rachada num qualquer calhau. Desde então, o meu entusiasmo por escalar decresceu consideravelmente. Voltei a escalar depois disso, mas nunca mais foi a mesma coisa.

Qualquer atleta semi-profissional sabe que a seguir a uma lesão, a uma queda ou acidente, é importantíssimo não parar, e tentar a manobra de novo, imediatamente - caso contrário, corre-se o risco de desenvolver um medo permanente, uma hesitação destrutiva, associada ao que quer que tenha resultado no incidente. Há pessoas que não querem saber, que partem uma perna e assim que esta cura partem a outra numa proeza de igual risco, como é o caso do meu irmão, para quem férias não eram férias sem uma visita ao hospital local, e meia dúzia de pontos para a complementar.

Com o decurso do tempo vamo-nos lesionando. Romanticamente, emocionalmente, profissionalmente. Há aqueles que voltam para a parede imediatamente a seguir a cair, e continuam a escalar como se nada fosse, e aqueles que lhe ganham receio, muitas vezes por falta de alguém que os pique com um pau e diga “sobe”. E depois há também os que não sabem cair, porque nunca caíram, que sobem como se nada fosse, e a meio da subida se apercebem que não fazem ideia em que direcção fica o topo.

A percentagem de artistas que desistem e optam por outro modo de vida e subsistência é maior (por léguas, suspeito) do que em qualquer outra actividade profissional. Embora esta crença não funcione muito a meu favor, acredito que tem de ser assim - o aço mais duro é temperado muitas vezes, passado pela forja, martelado e mergulhado em água gélida, libertando as impurezas, até a própria estrutura molecular se tornar outra. Ninguém nasce artista - tornamo-nos. Não sei de que tipo de aço sou feito, ou se já levei marteladas suficientes, mas sinto o fogo dessa forja no rabo dia sim, dia não. Esse fogo, e outros. Em meu redor os meus amigos começam a ter casas, filhos, famílias, automóveis, contabilistas, e jantam fora - por vezes caio na tentação de me deixar influenciar por isto. As minhas escolhas de vida são outras, e por alguma razão as tomei - o que para muitos é uma segurança, para mim é um constrangimento - mas as lesões e os martelos dão vontade de fugir, para uma vida mais estável, digna e tranquila. É uma opção que considero, mas por enquanto, como designer, pareço estar a conseguir alguma forma precária de equilíbrio.

Fig.1 Um Simão bastante mais novo (e exponencialmente mais estúpido) milissegundos antes de se esbardalhar no chão. c.a. 2005

Mas será este equilíbrio fruto apenas da necessidade de sobreviver, ou será simplesmente uma forma mais sofisticada de hesitação? Como um ginasta que deu uma queda no plinto, ganho receio a fazer arte, em viver esta vida e assumi-la como minha. Fico com medo de ser artista. Como alguém que foi traído por um parceiro ganha uma resistência permanente à entrega total e desinibida da sua intimidade, também eu ganho resistência à pintura, uma hesitação fatal que me leva a nem sequer tocar num pincel durante semanas. Quando as coisas correm bem, os movimentos parecem ser ininterruptos, cada gesto leva balanço do anterior e propele o seguinte. Não há hesitação, apenas um único fluir de perfeita execução, tão natural como o de um rio, e igualmente irracional. Por vezes conseguir um momento deste fluxo, um estilhaço de silêncio por entre o rodopio das muitas quedas de que o meu corpo ainda ecoa, consome todas as minhas energias. Só então fica a minha mão imbuída de certeza, imune ao pavor de olhar para baixo, como se subisse uma muralha de pedra em pedra. É nesses raros momentos, quando não estou a negociar a minha vida, a procurar soluções e a desenrascar-me de alhadas variadíssimas, que me apercebo que nunca devia ter deixado de tentar escalar.

É nas hesitações que as presas nos escapam, e com elas o nosso tempo. Um tigre não pensa duas vezes quando tem a oportunidade de atacar. Não tem medo de falhar, não pondera as consequências, não medita auto-reflexivamente, ou tenta arranjar trabalho como tapete caso a vida de caçador não lhe assente. Um tigre mata, e mata logo. Um melro não acorda de madrugada ponderando se haverá minhocas para o pequeno-almoço. Desce do ninho e anda às turras na erva molhada até encontrar uma. Ou há minhocas, ou não há. Pergunto-me se não deveria tirar daqui alguma lição, mas não sou um tigre nem um melro, e se calhar não fui feito para não hesitar. Se calhar fui feito para cair.

Falhar é o pão-nosso de cada dia para um artista. É essencial para que evoluamos, mas extremamente desagradável na mesma. Inaugurar uma exposição e não vender uma única obra não é azar: é a norma. Concorrer a prémios ou bolsas, igualmente. É tão normal e expectável que se falhe, que qualquer pessoa com dois dedos de testa evitaria este destino, assim que se apercebesse daquilo que enfrenta. Neste aspecto, no entanto, creio partilhar da mesma estupidez fabulosa que tanto admiro no meu irmão: não importa quantas pernas parta, vou sempre tentar subir a parede de novo.

— Simão Martinez, pára-quedista amador

Até para a semana!

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