Há alguns anos atrás, quando fazia escalada no Algarve, dei uma queda valente. Não foi a primeira vez que quase fui desta para pior, mas estar perto de morrer marca-nos sempre. Caí em pêndulo, o que poderia ter sido fatal. Cair a direito é menos perigoso - a corda é elástica e amortece a descida, e a probabilidade de colisão com alguma rocha mais proeminente é mais baixa - o caminho vertical que escalamos tende a ser relativamente liso, especialmente fazendo escalada em vias já preparadas por outros escaladores. Em pêndulo, não temos controlo, somos como um carregador de telemóvel pendurado pelo um fio - sempre que pego num, ele tende a bater em pelo menos três peças de mobiliário. Num momento estava na parede, no seguinte estava de pernas para o ar, trinta metros abaixo de onde estava. Por milagre, saí apenas com uma entorse no pé, e não com a cabeça rachada num qualquer calhau. Desde então, o meu entusiasmo por escalar decresceu consideravelmente. Voltei a escalar depois disso, mas nunca mais foi a mesma coisa.
Qualquer atleta semi-profissional sabe que a seguir a uma lesão, a uma queda ou acidente, é importantíssimo não parar, e tentar a manobra de novo, imediatamente - caso contrário, corre-se o risco de desenvolver um medo permanente, uma hesitação destrutiva, associada ao que quer que tenha resultado no incidente. Há pessoas que não querem saber, que partem uma perna e assim que esta cura partem a outra numa proeza de igual risco, como é o caso do meu irmão, para quem férias não eram férias sem uma visita ao hospital local, e meia dúzia de pontos para a complementar.
Com o decurso do tempo vamo-nos lesionando. Romanticamente, emocionalmente, profissionalmente. Há aqueles que voltam para a parede imediatamente a seguir a cair, e continuam a escalar como se nada fosse, e aqueles que lhe ganham receio, muitas vezes por falta de alguém que os pique com um pau e diga “sobe”. E depois há também os que não sabem cair, porque nunca caíram, que sobem como se nada fosse, e a meio da subida se apercebem que não fazem ideia em que direcção fica o topo.
A percentagem de artistas que desistem e optam por outro modo de vida e subsistência é maior (por léguas, suspeito) do que em qualquer outra actividade profissional. Embora esta crença não funcione muito a meu favor, acredito que tem de ser assim - o aço mais duro é temperado muitas vezes, passado pela forja, martelado e mergulhado em água gélida, libertando as impurezas, até a própria estrutura molecular se tornar outra. Ninguém nasce artista - tornamo-nos. Não sei de que tipo de aço sou feito, ou se já levei marteladas suficientes, mas sinto o fogo dessa forja no rabo dia sim, dia não. Esse fogo, e outros. Em meu redor os meus amigos começam a ter casas, filhos, famílias, automóveis, contabilistas, e jantam fora - por vezes caio na tentação de me deixar influenciar por isto. As minhas escolhas de vida são outras, e por alguma razão as tomei - o que para muitos é uma segurança, para mim é um constrangimento - mas as lesões e os martelos dão vontade de fugir, para uma vida mais estável, digna e tranquila. É uma opção que considero, mas por enquanto, como designer, pareço estar a conseguir alguma forma precária de equilíbrio.