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N E W S L E T T E R # 3 8

Uma Corrida Contra o Tempo

Comecei o ano passado com uma corrida à chuva, lado a lado com a Neide. Chovia granizo, tão grosso que até doía, pelo que tivemos de parar debaixo de uma árvore, no cimo da Quinta das Conchas, junto ao aeroporto. Em vez da ressaca costumária, comecei com um olhar límpido sobre o dia, com uma determinação cristalina, que tentei ter comigo todos os dias do ano que se seguiu, embora tenha falhado em muitos, como seria de esperar. Lembro-me da sensação das pepitas de gelo a aterrar nas minhas mãos, cara e pernas, lembro-me do efeito que faziam ao cair sobre a vegetação rasteira: o impacto era forte o suficiente para que até as folhas maiores se movessem de forma irrequieta, de tal forma que tudo à nossa volta parecia excepcionalmente animado, num burburinho inquieto, como se por debaixo da vegetação algo dançasse no compasso da chuva. Tive, subitamente, uma percepção intensificada do estado vivo e pulsante das paisagens que nos rodeiam, que por serem tão estáticas por vezes nos parecem mero plano de fundo para o que quer que estejamos a fazer.

Comecei este ano também com uma corrida, desta vez sozinho, desta vez por paisagens que nunca tinha percorrido, e ao sol - esse astro com a qual a minha epiderme tão frequentemente se desentende. Estava num sítio novo, e os detalhes dos quilómetros que calcorreei ficaram bem gravados na memória, como em qualquer viagem por um sítio novo. À falta de granizo, decidi saltar de cabeça para uma piscina de água tão fria que nem foi frio, mas dor o que senti a seguir ao salto. O sedentarismo prolongou a nossa vida física, mas em contrapartida parece ter encurtado a vida psíquica, ou a sensação de ter vivido - algo que compensamos, talvez com o hábito de viajar. E quando viajamos, não parece que os dias esticam e esticam? Isto está já muito estudado, não digo nada de novo aqui: viver coisas novas intensifica a percepção do tempo, e da memória.

Curiosamente, esse dia à chuva, o ano passado, num sítio por onde passo todos os dias, ficou tão vívido em mim como a primeira vez que fui a Roma, como o meu primeiro dia de escola, como os melhores e como os piores dias da minha vida, tão longos que custa a acreditar que tiveram o mesmo número de horas que os restantes. Não foi sequer por ser dia 1 de Janeiro - não me lembro de praticamente nenhum outro primeiro de Janeiro, dos vinte e oito que já passaram. De trinta e uns, lembro-me de vários… até certo ponto, isto é. Foi como se viajasse para um sítio novo, mas no mesmo sítio de sempre. Desde que comecei este hábito de ir correr aqui na minha zona, tenho vindo a reparar que de todas as vezes vou reparando em coisas novas, mesmo que apenas alterações ligeiras à paisagem. Não é por acaso que a maioria das pinturas que fiz em 2020 tenham sido de lugares semi-imaginados, com base nos lugares por onde passo a correr. Dadas as circunstâncias em que me encontro, viajar para outras paragens é uma opção rara, de modo que tive que me desenrascar.

Fig.1 Quinta das Conchas, Janeiro de 2022

Preocupo-me bastante com a passagem do tempo, como já devem ter inferido do tipo de coisas que escrevo. Embrenhado em computadores, e rotinas repetitivas, em parte por necessidade laboral, em parte por vício antigo e auto-destrutivo, sofro bastante com a sensação de tudo passar a voar, e estou determinado a combatê-la. Morrer, vou morrer de certeza, mas viver - isso não está assim tão garantido. A ansiedade por vezes é tanta que me dispersa e retira energia aos esforços de ter uma vida menos sedentária, o que por sua vez aumenta a ansiedade, num ciclo deliciosamente viciado e viciante.

Se há coisa que me fascina na pintura e no desenho, especialmente na paisagem, é esta sensação de percurso, de sítio novo, de deâmbulo e de passeio. Quanto mais pintura vejo, mais o mundo me parece pintado e desenhado - depois de ver os jardins de Sorolla, nunca mais olhei para um jardim com indiferença. Depois de ver as paisagens nocturnas de Grimshaw, nunca mais experienciei o luar do mesmo modo. É fácil cair na tentação de dar por visto aquilo que vemos com frequência, de dar por conhecido quem já conhecemos, de dar por repetitivo e desinteressante aquilo que tem o potencial de nos surpreender continuamente. E caindo nela, a memória faz o bonito serviço de fundir os dias, e as palavras, numa só, num murmúrio indistinto em que o ontem, hoje e amanhã dizem todos a mesma coisa.

Poderia ter perfeitamente continuado a correr sem fazer caso a este fenómeno, esta dança das plantas sob a chuva pesada, na qual nunca antes tinha reparado. Mas a transição de ano é sempre um período saturado de ansiedade, e alguma hiper-consciência da minha cronologia pessoal. O primeiro dia do ano é um dia importante e cheio de superstições: no meu caso, meti na cabeça que o modo como o passo vai determinar o ano que vou ter. Quase todos os anos tive a sensação de não ter feito o suficiente, de ter desperdiçado muito tempo, de estar a navegar sem velas içadas, ao sabor da corrente.

Este ano não fiz grandes resoluções, tirando talvez a de deixar devorar tabletes de chocolate daquelas com cereais crocantes dia sim, dia sim, coisa que me enevoa corpo, mente e espírito. Desde que continue o que já comecei, e que continue atento, acho que não preciso de muito mais. Desde que não me falte a coragem para enfrentar que o meu tempo escasseia sem que o terror me paralise, ou sair do quentinho para mergulhar de cabeça em água gelada, fico descansado. Desde que não me falte a coragem para dar uma corrida à chuva, e deixar-me tocar pela força da vida que inunda e irrompe por entre cada recanto dos nossos dias.

— Simão Martinez, atleta temporal

P.S: Embora escrever estes textos seja com frequência doloroso, em 2022 o Não Me Falem de Arte continuará semanalmente, como era suposto, com o ocasional descambanço porque pronto, a vida é assim e eu também. Aos meus leitores e amigos, desejo um feliz ano novo, e espero que não vos falte a coragem.

Secção Acervo

Todas as semanas, obras que estão perdidas pelo atelier

Aguarela e gouache s/papel

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