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N E W S L E T T E R # 4 2

Desenho à Vista

Em “Memórias de Cego”, o filósofo francês Jacques Derrida aborda o acto de traçar, de produzir imagem e texto, e a sua relação com a visão e a cegueira, e sobre o papel fulcral do espaço intermédio e intermediário entre as duas, nas origens do desenho, do retrato e auto-retrato, e da memória visual. Em (péssima) suma, a hipótese que propõe é que no desenho, por exemplo, o papel da cegueira, da invisualidade é tanto ou mais importante como o da visão. Imaginemos: estamos numa aula de desenho, em frente a um modelo nu, a partir do qual temos de produzir um desenho rigoroso e com uma composição devidamente calibrada na folha. Quem não tenha o treino, não vai conseguir representar com veracidade a anatomia do modelo, a postura, a incidência da luz e da escuridão, e muito menos saber inserir a figura no papel, à escala certa, equilibrando áreas de foco com áreas menos detalhadas, criando um percurso interessante para o olhar, que o permita divagar por entre a página a esgotar.

Esse treino que vamos desenvolvendo consiste, essencialmente, em criar distância do modelo, através da superfície do papel. Uma distância daquilo que se está, efectivamente, a ver. No desenho resultante, vemos sempre a diferença entre quem conhece a ossatura e anatomia humana, e quem não. Entre quem sabe identificar uma faia, ou quem vê nela apenas “uma árvore”. Entre quem sabe ou não como são feitas as coisas por dentro, a que forças estão sujeitas e que forças exercem. Se não nos soubermos livrar dos vícios do olho e dismorfias da mente, e focar-nos no desenho enquanto objecto independente do modelo, é provável que fiquemos presos ao que achamos estar a ver, e não ao que temos, de facto, à nossa frente, ou ao que estamos a traçar na superfície. Quanto melhor sabemos ser cegos, e não ver o que temos diante de nós, melhor tende a ser a qualidade imagética do que desenhamos - aprendemos a compor e criar hierarquias, escolher de forma mais consciente aquilo que figura ou não na tela, aquilo que nos interessa ou não mostrar. Há uma certa verdade das coisas, um misto de experiência e memória, que parece ficar de algum modo alojada num espaço intermédio, o das imagens que temos no olho da mente, algures entre o olhar e o papel, entre a visão e a cegueira.

Quando algum amigo nosso se vai embora para o estrangeiro, tendemos a querer estar mais com ele, a aproveitar a sua presença enquanto ainda nos é acessível. Temos a sensação de viver mais intensamente, de o tempo e a memória se multiplicarem, tornarem mais difíceis de esquecer. Numa amarga ironia, às vezes lembramo-nos melhor do dia em que se foi embora, do que todos os outros, embora sejam os mais importantes. Essa vivacidade atípica da memória é tão mais forte quanto mais intensamente vivemos a experiência, mas na maioria das situações, a intensidade de uma experiência não está sob o nosso controlo…

…Mas pode estar.

Fig.1 Sessão de plein-air, Leiria, em Novembro de 2021. Estava um frio de rachar. Lembro-me bem demais.

Quando estou diante de uma paisagem e a sinto a puxar-me, seja por que motivo for (a maioria das vezes não sei qual é), a sensação é semelhante a ter um amigo que se vai embora: a de querer subitamente inalar cada movimento da brisa, devorar cada pormenor do que me rodeia, memorizar o canto de cada pássaro e gravar em mim a incandescência das cores como um ferro em brasa.

Nesses momentos um outro eu abre os olhos e os sentidos, um cujo papel seja talvez o da Testemunha, e não o do Participante, aquele que está directamente envolvido com o presente. A Testemunha vê com os olhos do Participante, sente com o seu corpo, mas não regista nem sente o mesmo. É a Testemunha que nos permite ver o mundo por dentro, que nos permite pintar e desenhar, que arquiva zelosamente as sensações e impressões nos tomos da consciência. Em certos momentos, a Testemunha é capaz de se sobrepor ao Participante, de criar distância entre nós e aquilo em que estamos a participar - um surto de uma estranha lucidez, que pelo menos no meu caso tende a surgir com frequência quando estou excessivamente envolvido numa situação, quando as emoções levam a melhor, quando as circunstâncias me encurralam e parecem deixar-me poucas opções. De repente, fico cego - o olhar sobre o imediato é ofuscado, e por entre os incêndios do terror e a fúria, aparece de súbito o vislumbre de um grande rio vagaroso, do cantar de pássaros, de um sol poente. Da enormidade da vida, que a Testemunha conhece bem, e o Participante tantas vezes se esquece.

Nem toda a gente tem uma testemunha assim, ou pelo menos, nem toda a gente lhe sabe dar ouvidos. A minha já me salvou de bastantes arrependimentos. A falta de distância é fonte de alguma “hipermetropia emocional”. Acontece com frequência que as pessoas que temos mais perto são as que pior vemos, desfocadas num nevoeiro de experiências passadas, divisões recorrentes e toda uma série de enredos. Começam a habitar mais profundamente o nosso espaço invisual e abstracto, ganham contornos simbólicos ou de arquétipos, entre a idolatria e o ódio. Por vezes, até o ar se adensa e se faz difícil de respirar. Mas quando se cria distância, o oxigénio volta a saturar-nos. Desenhar à vista é saber ser testemunha e participante, negociar um acordo entre a experiência e a memória, entre o visível e o invisível. Curiosamente, é uma benesse do ser artista que não esperava encontrar, e umas das razões pela qual desenhar, e desenhar à vista, se tornaram muito mais que um exercício ou treino - são uma meditação, e uma necessidade absoluta. São o vislumbre de um grande rio áureo, capaz de erodir todos os pequenos horrores, paixões e raivas que me roubam a vista.

— Simão Martinez, vesgolho.

Até para a semana!

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