Copy
Consultar o arquivo de newsletters
N E W S L E T T E R # 4 1

Cor-De-Burro-Quando-Foge

Falam muito do ter saudades, mas na minha opinião esta é a menos preciosa das expressões exclusivas à língua portuguesa. Toda a gente tem saudades, até os chineses, quando não estão entretidos com um bom arroz de morcego. Agora o Cu de Judas, a Morte da Bezerra, os Quintos Caralhos, ou os Olhinhos de Carneiro Mal Morto, esses só existem na topografia vocabular deste país. Mas a minha preferida entre todas…

Quando era pequeno a minha mãe, com a sua veia curatorial já bem evidente, implicava com o facto de, quando estava a pintar com aquelas tintas de gouache que cheiram a escola primária, eu misturar as cores todas e fazer uma bodega. Eu perguntava que cor era aquela, a que surgia depois de meticulosa experimentação com todas as cores que tinha disponíveis, e ela dizia-me: “isso é cor-do-burro-quando-foge”. Eu ria-me infalivelmente. Aliás, até hoje é-me impossível falar desta cor sem um sorriso na cara. É uma expressão prima do meio do nada, ou da sandes de asa de leitão, expressões que alegadamente representam uma ausência ou impossibilidade, mas que falham no seu propósito, uma vez que não as consigo ouvir sem produzir uma série de imagens mentais, por norma estapafúrdias.

O que a minha mãe não sabia, era que eu fiquei a achar mesmo que aquele era o nome da cor. É uma cor indesejável, afinal de contas, para o tipo de pinturas que fazia na altura, os amarelos e verdes e azuis saturados que saíam quase directos da garrafa adequavam-se bastante melhor. As correspondências eram bastante simples: as laranjas e os telhados eram cor-de-laranja, a relva era verde, as árvores castanhas, o sol amarelo, as pessoas cor-de-pele (a mais difícil de encontrar nos kits da época, e a mais polémica). Mas a minha teimosia prevalecia: experimentava metodicamente todas as combinações possíveis, e para meu enorme fascínio, acabavam todos na mesma: já sabem bem qual era. Como era possível que a mistura de cores tão vivas produzissem aquela, sempre a mesma, que não era nem carne nem peixe? Não dava para pintar nada com aquilo, não havia nem plantas, nem árvores, nem casas, nem bichos daquela cor.

Como tal, teimava em pintar tudo o que podia com ela - o meu gosto pelo abominável começou cedo - e estava convencido que nenhuma cor era mais interessante - segundo a lógica da época, a combinação de todas as cores resultaria decerto na cor suprema. Para grande vergonha minha, só muito mais tarde na vida (muito mesmo) é que juntei dois com dois e percebi o que queria dizer “cor-do-burro-quando-foge”: uma cor que não existe, que não se vê, que não corresponde a nada em particular, um meio do nada óptico. A imagem que tinha antes era a de uma espécie de borrão acastanhado com tons de violeta sujo, causada pela passagem de um burro a alta velocidade sobre o meu campo de visão. Mal sabia eu que este raio deste burro me ia circundar a cem quilómetros/hora para o resto da minha vida. Tal como todos os lugares, todas as cores existem: o meio do nada é sempre algures.

Fig. 1 Uma série de asnos fugidios perdidos numa das minhas telas

Entre profissionais, estas cores sem nome são chamadas cores lamacentas (“muddy colors”), e são muito utilizadas para determinados propósitos - nem tudo numa pintura pode ou deve estar saturado de cor pura ou intensa - embora muitas vezes a a presença excessiva destas cores enlameadas possa ser também sintoma de um pintor incompetente na teoria da cor, coisa que não escasseia, visto que nem nas faculdades é devidamente ensinada. Quanto mais pintamos o mundo, mais evidente se torna o facto de que a maioria das coisas não têm cor, ou pelo menos nunca têm a mesma. As nuvens não são brancas, a relva não é verde, a água não é azul, e as montanhas não são cinzentas. A juntar à festa, há ainda a relatividade da percepção das cores - determinados emparelhamentos cromáticos fazem com que uma cor pareça a outra, como que por magia.

Tudo muda com a luz, a hora, ou a estação; as pedras brancas da calçada são azuis de madrugada, as folhas verdes de um plátano um ocre dourado ao final da tarde, a madeira de um móvel escuro arroxeada quando em sombra, e a pele humana então nem se fala, é de uma variedade complexidade enorme, muda quase minuto a minuto. Quanto mais pintamos, mais nos vamos apercebendo de que a maioria das coisas não tem, propriamente, uma cor, ou melhor dizendo, que a cor das coisas é sempre afectada pela das que a circundam, e factores atmosféricos. Que a grande maioria das coisas que vemos é feita de cores sem nome. Tenho uma obsessão por estas cores indesejáveis e turvas, para as quais tinha muita dificuldade em encontrar correspondências no mundo, em criança, mas que hoje vejo por toda a parte, nas plantas, nas árvores, nas casas e nos bichos.

Confesso que metade do tempo, não sei ao certo que cores estou a utilizar numa pintura, nem sei bem como as misturei, por já ser instintivo. Tirando o azul ultramarino, que uso à grande e à francesa, raramente consigo discernir especificidades das cores estão na tela - são coisas a puxar umas pelas outras, um cinza a puxar para azul, um verde a puxar para castanho, um amarelo a puxar para ocre; ferrugens, violetas térreos, castanhos lamacentos e azuis impuros, que formam misteriosos acordes cujas notas individuais são difíceis de discernir. E gosto de trabalhar assim, de descobrir estas puxadelas entre as coisas, delicio-me a contemplar o modo como se relacionam, como adquirem manchas tão inesperadas, como produzem dissonâncias e artefactos, como a mesma tinta pode parecer outra cor dependendo de onde é colocada, numa tela; a contemplar como vivem umas das outras, reflectindo-se e contaminando-se promiscuamente; que a mais simples e despida das paisagens pode, numa fracção de segundo, evocar memórias, sons, palavras, mundos inteiros dentro de nós. Descobrir a luz e a cor é como descobrir o caos por detrás do que parece ordeiro, uma radiação que fulmina, permeia e transforma tudo aquilo que toca - e nada escapa ao seu toque.

Quando ouço dizer que a pintura está esgotada e exausta, perto do fim, que agora tem tudo de ser tridimensional e multissensorial, pintura num campo expandido e instalativo, só me dá vontade de rir. É o mesmo que dizer que a literatura morreu porque não se inventaram palavras novas, e que os livros terão de ser, doravante, administrados via injecção ou supositório, de modo a conseguir algum tipo de originalidade. Enquanto houver olhos para ver a terra, alguém a vai pintar. E vos garanto que atentando numa pintura “realista”, se isolarem um pequeno ponto numa tela, e olharem para a cor que contém, isoladamente, na maioria dos casos dificilmente lhe saberão dar outro nome… que não a cor um burro bem veloz.

— Simão Martinez, Espanta-Burros

Até para a semana!

Secção Acervo

Todas as semanas, obras que estão perdidas pelo atelier

Vinil s/MDF - Colecção Privada

www.simaomartinez.com

Copyright (C) 2022 Simão Martinez. All rights reserved.

Update Preferences | Unsubscribe

Email Marketing Powered by Mailchimp