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N E W S L E T T E R # 4 4

Os Deuses Escondidos - Parte I

Confesso, que apesar de toda a minha educação e intelecto, continuo inclinado no sentido da existência de algo maior. Em vários mitos da criação antigos, desde os Sumérios aos Cristãos, existe, em graus de explicitude variada, a ideia de que deus ou qualquer outra entidade criadora moldaram o homem à sua imagem. Estudando estas narrativas e mitos, parece-me que a situação é, na verdade, o oposto: criámos deus à nossa. Temos sempre algo em comum com os deuses, e os deuses connosco. Os deuses são magnânimos, misteriosos, e omniscientes, mas também se enfurecem, vingam, perdoam, nutrem e fulminam, apaixonam, divertem, desejam e fazem planos. Para uma entidade tão incompreensivelmente críptica e superior, todos estes aspectos acabam por ser surpreendentemente humanos. E na verdade, nem todos os deuses estão lá no alto, como estamos mais habituados. Muitos, em várias narrativas e religiões pelo mundo fora, viviam entre nós, bebiam, dançavam e caçavam connosco, e ocasionalmente até faziam coisas melhor enquadradas no espectro da malandrice.

O deus com que cresci é específico ao meu contexto. Era um deus extremamente sério e aborrecido, o deus das horas tortuosas de catequese, de padres empoeirados e monocordicamente murmurantes, parecendo aproximar-se do reino dos céus a cada palavra proferida, mais para lá do que para cá. Na minha juventude, descobri outro deus, mais animado, um de coros e guitarradas, tambores e fogueiras, de missas joviais e padres mais despertos e articulados. Alegadamente eram o mesmo, mas tinha as minhas dúvidas. E ambos deixavam por responder as questões que me eram mais importantes. Esta fase da minha vida foi impactante, mas creio que mais pela componente social. Apesar de, infelizmente, eu ter todos os traços de um idealista, sempre tive uma resistência à ideologia, e sou demasiado preguiçoso para fanatismos. Na minha família tenho tanto cristãos com ateus absolutamente ferranhos, pelo que fiquei atento às propriedades da crença obstinada num determinado ideal. No entanto, este tipo de crença, na minha opinião, parece ser indispensável para o progresso, mesmo que estúpida. Afinal de contas, os grandes feitos, os grandes saltos que damos enquanto espécie, para bem ou para mal, são levados a cabo por quem acredita numa determinada visão partilhada. Se aquilo em que acreditam é particularmente benéfico, isso já são águas menos claras. A luz divina tende a produzir sombras compridas.

Já experiencei, no entanto, coisas para as quais não tenho, pura e simplesmente, explicação. Tendo já experimentado uma miríade de estados alterados de consciência, a maioria dos quais não tenho particular desejo de repetir, posso dizer que estas foram claramente distintas. E subtis. Foram raras, e separo-as daqueles momentos em que parece que as coisas aconteceram por desígnio, coincidências muito improváveis, e outras coisas que tais que experienciamos durante a nossa vida, e muitas vezes atribuímos, erradamente, a uma intervenção sobrenatural. Sabem do que falo: os afamados “sinais do universo” que quanto mais procuramos mais encontramos em todo o lado; na minha opinião uma forma de superstição primitiva em que substituímos o velho deus barbudo por um mais científico, e aparentemente mais provável, o Universo, ou pior ainda, o Karma, essa infame apropriação orientalista, convenientemente mal-interpretada e distorcida para um sentido de justiça e retribuição claramente vinculado a um sistema de moralidade pessoal - geralmente de raízes inegavelmente europeias, longe de ser universal.

Fig.1 “Hidden God”, projecto digital, 2018.

Quem se dedique tempo suficiente a escutar os sinais do universo depressa se torna um grande profeta, adivinho do que aí vem, trocando o deus dos padres semi-fossilizados e das missas intermináveis ao fim da tarde por um mais moderno, cheio de novo palavreado, mas que faz essencialmente a mesma coisa. Temos a liberdade de acreditar no que quisermos, mas pessoalmente, se é para escolher um ou mais deuses, acho preferível que se escolha um que esteja bem documentado, e não um cuja definição muda de pessoa para pessoa, segundo lhe convém - pelo menos, existe algum entendimento, um sentido colaborativo e não tão narcisista. Ao menos é uma crença assumida, alguma forma de espiritualidade, em vez da tão frequente mixórdia pseudo-racional de sabedorias, citações descontextualizadas e coisas inteligentes que uma vez ouvimos alguém dizer. Essa mixórdia tende a ser mais uma forma de justificação para a nossa falibilidade, tendo mais de racionalização que de espiritualidade.

Acreditar em algo intangível, em algo impossível, numa determinada visão de como as coisas operam ou deveriam operar, faz parte de ser humano. Não interessa que seja uma ilusão ou um sonho. Quando partilhada, tem a capacidade de nos unir numa causa comum, de nos motivar a colaborar e transcender as barreiras de que nos rodeamos. Ou a simplesmente a alienar ou limpar o sebo a quem não a partilha. Também dá para isso.

Tendemos a divinizar as coisas, e a demonizá-las, também. Primeiro, o vento, as árvores, o sol, os animais. Depois, histórias mais complexas, deuses antropomórficos, com narrativas mais complexas e documentação organizada. O que vim a reparar, é que a vida espiritual é uma necessidade humana, e quando não vivida, deixa no seu lugar uma fome. Tendo a ciência explicado melhor e mais satisfatoriamente muitas coisas que antes se atribuíam à divindade, os velhos deuses perderam alguma credibilidade. Mas a necessidade de algo maior manteve-se. E observando a contemporaneidade, tenho a ligeira sensação que tentamos saciar essa fome com outros cultos e venerações: ao ver as pessoas dedicarem fervor às vidas de desconhecidos, a venerar celebridades, obcecadas com a sua vida, amores e desamores, ou a vilanizar os seus deslizes, como se de um panteão de semi-deuses se tratasse - seguindo cada passo que dão; a venerar corpos e sexualidade como se nada mais de importante se estivesse a passar no mundo; a prestar culto em rituais de consumo, aos deuses de ouro que fabricámos, capazes de definir o valor de tudo e todos os que nesta terra existem, no qual acreditamos sem questão; a endeusar a política, formando toda a nossa identidade em torno de uma ideologia, excluindo por defeito todas as outras; a acreditar religiosamente em todo o tipo de teorias rocambolescas, derivadas por profetas de meia-leca ou demagogos talentosos, ou a deter um fervor igualmente religioso na razão e na ciência, ignorando o facto que, por natureza, a última não se dá bem com absolutos inquestionáveis. São deuses escondidos, aqueles que veneramos sem saber, sem controlo sobre aquilo em que acreditamos. Os mecanismos da crença, do culto, da espiritualidade, estão sempre em movimento, e não há ninguém que lhes seja imune.

Especialmente vulneráveis, parece-me, são aqueles que acham que não acreditam em nada. Como os mais perigosos loucos, que acham ser perfeitamente normais.

— Simão Martinez, infiel pagão

Até para a semana!

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