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N E W S L E T T E R # 4 3

O Último Dia do Resto da Minha Vida

Não sei se tenho boa memória ou não. Estou há vários anos a tentar ler um livro com técnicas para melhorar a memória, alegadamente inspirado em métodos antigos, utilizados, pelo menos, desde os gregos antigos e romanos - mas nunca me lembro de o ler.

Segundo consta, os antigos teriam memórias que hoje seriam consideradas prodigiosas - e não duvido - afinal de contas, livros e mapas não eram comuns, muitas épicas e contos eram passados por tradição oral, bem como conhecimentos sobre o que comer, onde ir ou que caminhos evitar. Consequentemente, ter uma memória bem desenvolvida poderia fazer a diferença entre a vida e a morte, ou entre a preservação de uma cultura e a sua total obliteração. Não sou particularmente nostálgico desta era, e a escrita e a imprensa tornaram estes processos de memorização algo obsoletos. Para além disso, vivia-se menos tempo, morria-se de diarreia, e no tempo dos romanos, por exemplo, limpavam-se as regiões baixas com uma esponja comunal, partilhada amigavelmente entre os utilizadores dos lavabos, pelo que não invejo esta era dourada da civilização. Prefiro levar a esponja de casa.

O barco, no entanto, parece estar a virar para o sentido oposto, e sinto a mudança de vento a roçar a pele. Como não tenho a necessidade de memorizar, como sei que os registos existem, que a informação abunda e é de fácil acesso, a memória definha, por falta de exercício. Admiro-me constantemente com a geração dos meus pais, que ainda sabem fazer ou arranjar uma série de coisas que poucos da minha idade sabem. Pagamos - e pagamos caro - aos poucos que ainda as sabem fazer, geralmente problemas tão simples como trocar um parafuso, ou montar uma prateleira. Para uma geração que se diz ser uma das mais educadas de sempre, somos surpreendentemente inúteis. Dou por mim chocado, muitas vezes, com o total desconhecimento da geração mais nova em relação a coisas daquelas que toda a gente sabe. Cheguei a conhecer uma pessoa que não sabia quem tinha sido Adolf HItler. Trata-se, claro, de um caso raro e isolado, mas um que dá indícios que já se abrem rachas no casco, que é possível que o que tomamos por garantia ser conhecimento comum, pode muito bem não vir a sê-lo. Pagamos caro por aquilo que deixamos de saber, e esquecer a história torna-nos vulneráveis a repeti-la, ou a tecer sobre ela ficções perigosamente ignorantes e ingénuas.

A vida parece encurtar quando nos esquecemos das coisas. Às vezes é por bem: esquecemo-nos das coisas que nos magoaram, das longas horas de sofrimento, das gritarias e dos conflitos. Ou, pelo menos, só acedemos a vislumbres esporádicos, por vezes despertados por um estímulo - um odor particular, um som ou um gesto - ou uma situação particular, que pesca do fundo do poço alguma memória cuidadosamente submersa. Mas as coisas boas também se esquecem, especialmente quando não fazemos cuidado para as lembrar. Ou quando não nos convém fazê-lo. Ser esquecido é ser sempre novo, algo que suspeito estar relacionado com a minha boa disposição, por vezes inexplicável tendo em conta a quantidade de áreas da minha vida em que estou em falta.

Fig.1 Xylospongium, utensílio potencialmente letal de limpeza íntima, de uso público e alegremente partilhado nas metrópoles do império romano. Provável causa de muitos suicídios inadvertidamente cometidos.

Ser esquecido é também um excelente método de falsificação da personalidade. Há pessoas que se acham o pico da humanidade, provavelmente porque no próprio dia ou no anterior não fizeram nenhuma maldade. O mundo está cheio de pessoas novas todos os dias, renovadas pela ausência da memória que deixam atrás de si, no esquecimento: as pessoas com quem estão em falta, as que ignoram, as que deixam ao abandono em troca da benção de acordar bem-disposto. Esta capacidade aparentemente cruel tem também a sua utilidade, para seguir em frente, para lidar com o trauma, para não nos deixarmos ir abaixo num mundo que aparenta viajar apenas numa direcção, a de uma espiral descendente. À medida que as nossas memórias enfraquecem, dá-me a sensação que a nossa capacidade de negação da realidade fortifica-se mais e mais. E o negacionismo, como já terão notado, parece de facto cada vez mais em voga.

Mas quem somos, se não formos capazes de lembrar? Se a nossa vida se resume a ignorar as durezas da realidade, focados em sentirmo-nos bem a toda a hora, a ser uma pessoa nova todos os dias da nossa vida? E mais importante ainda, o que acontece aos que ficaram para trás? Aos que morreram esmigalhados nas minas para que edificássemos o mundo, aos soldados adolescentes que morreram de espingarda na mão ou com uma espada nas tripas, borrados de medo, para que tivéssemos liberdade; às incontáveis mulheres sujeitas aos horrores de guerras e saques, ou consignadas às entrelinhas da história, condenadas a sofrer em silêncio; aos que sacrificaram tudo por nós, para que nos pudéssemos dar ao luxo de ser algo novo todos os dias? Aos pais que e avós que negligenciamos, às histórias que por conveniência esquecemos, e cuja verdade depois fazemos tudo por negar?

Alguém disse, famosamente, “nós só morremos quando o nosso nome for proferido pela última vez”. Mas no entanto, quanto mais estudo a memória da humanidade, mais altas são as vozes de quem cujo nome há muito foi esquecido. Cada pedra da calçada foi lá posta por alguém, cada lei nasceu de um crime hediondo ou terrível injustiça, cada minuto das nossas vidas está rodeado pelas horas incontáveis de outras. Quando caímos neste mundo, as coisas já existem, e é possível, como tudo o que já existe à nossa volta, que nos não nos lembremos de que a maioria das coisas foram feitas. Podemos dar-nos ao luxo de maldizer os regimes antigos, apontar o dedo à sua barbárie, mas duvido que a maioria de nós esteja disposta a abdicar dos espólios e herança que deles herdámos, do engenho e da arte de que foram pioneiros, da segurança e estabilidade conseguida a custo de um rio interminável de corpos, ao qual também pertenceremos.

As nossas acções têm consequências até ao final dos tempos. Quer queiramos quer não, somos causa e consequência. Se usufruimos de saúde, paz relativa, se não estamos entregues aos lobos e aos bandidos, temos alguém a agradecer, que pode não o ter feito em vista ao futuro particular que habitamos, mas que fez um esforço para que, pelo menos, algo melhorasse nas suas vidas, por muito pequeno que fosse. E cá estamos nós, aflitos por ver tudo a desabar, viciados em notícias escandalosas, paralisados pela nossa insignificância egoísta, procurando ser os heróis e protagonistas das nossas histórias. Cá estamos nós, contentes com o sermos capazes de nos esquecer de tudo e de toda a gente. Olhando cada dia como o primeiro do resto, e esquecendo que devemos todos os nossos primeiros dias, aos últimos de alguém.


— Simão Martinez, cujo nome se perderá na história.

Até para a semana!

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