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N E W S L E T T E R # 4 5

Os Deuses Escondidos - Parte II

Na comunidade cristã a que os meus pais pertenciam, e com a qual, mais tarde vim a estar também activamente envolvido, era habitual participar em retiros de silêncio. Decorriam em vários lugares, mas principalmente numa propriedade em Sintra, onde residiam, temporária ou permanentemente, missionárias da ordem, e se organizavam todo o tipo de encontros e retiros. Passei lá muita da minha infância e adolescência, e como à palma da minha mão, conhecia-lhe todos os cantos e recantos, que explorava incessantemente, enquanto os meus pais lá se entretinham com as suas actividades. Era para mim como uma segunda casa, e as missionárias uma segunda família. Não sei se ainda lá estará, mas há dez anos atrás, caminhando pela pequena mata que se estendia atrás das casas, encontrariam uma clareira, e nela uma capela improvisada, com uma grande cruz de madeira, suspensa de uma árvore, construída e decorada por mim, com a ajuda de um amigo. Creio ter perdido uma porção razoável de neurónios com as quantidades loucas de verniz Bondex (de validade expirada em 1980) que inalei quando lhe estava a dar os acabamentos.


Estávamos em silêncio durante a maior parte do dia, pontuado por palestras, reflexões colectivas sobre as meditações do dia, e refeições em grupo, durante as quais nos era permitido conversar. O primeiro dia era sempre o mais difícil - de repente, por não poder falar, só queria falar com toda a gente - e na altura eu ainda não era o fala-barato em que infelizmente me vim a tornar. Nos tempos de silêncio, saía munido de um caderno e caneta para anotar as minhas profundas revelações, mas acabava sempre por passar o tempo todo a desenhar. Ao segundo dia, já escrevia mais do que desenhava. Ao terceiro, começava a ficar farto de escrever, e estava já muito confortável com o silêncio. Aliás, ansiava-o. Era como estar sob a influência de uma droga, mas que em vez de me entorpecer e abafar os sentidos, os sensibilizava ainda mais, numa lucidez aguda. Notava que não era o único - à medida que os dias passavam, os jantares tornavam-se mais sossegados, as pessoas não falavam tão alto, não estavam tão sedentas de conversa - o silêncio fazia-se sentir em todos, um silêncio calmo e contemplativo, que só acontece quando as paredes do constrangimento caem por terra.

Não sei porquê, mas pensava sempre melhor quando estava empoleirado. Durante estes períodos de introspecção silenciosa, tinha sempre de me empoleirar nalgum lugar, um alto, um telhado de algum barracão, um ramo grosso de uma árvore. Alguns dos outros participantes sorriam ao ver-me, sempre acima do chão, num recanto qualquer, que nos meus tempos de infância poderia ter sido um refúgio nas infindáveis tardes em que jogávamos às escondidas, eu e os filhos dos outros pais que ali estavam. Ninguém conhecia aquele lugar como eu. E foi lá que dei de caras com algo absolutamente desconhecido, e que ainda pouco compreendo.

Estava deitado sobre um ramo grosso, de um ficus enorme que irrompia por entre as ruínas de um antigo pátio, coberto de azulejos quebrados, num patamar elevado acima das outras casas, no centro do qual teria havido um pequeno lago rectangular, agora vazio - uma relíquia dos anteriores donos da propriedade. O silêncio era total. E, de repente, comecei a ouvir algo. Primeiro, uma pulsação - a minha, pensei, por estar com a orelha encostada ao tronco - e depois um fluir, cada vez mais audível e claramente distinto dos ecos interiores do meu corpo.

Fig.1 Sintra, Dezembro de 2021

Fechei os olhos, e senti por dentro do ramo um rio, o som de água a correr e a borbulhar, a vibração dessa água na ponta dos meus dedos, que abraçavam o braço gordo da árvore. Já me tinha encostado a muitas árvores, incluindo aquela onde estava, e já me tinha até deitado sobre aquele ramo muitas vezes, incluindo durante algumas sestas furtivas, quando a meditação corria bem demais. Mas naquele dia, naquele momento, ouvi aquele rio, incessante, pulsante, alto, bem alto e claro no meu ouvido, o som de um fluir frenético. De súbito, a casca da árvore que tocava parecia pele, a pele rugosa de um enorme animal impossivelmente quieto, e era isso o que parecia estar a tocar - alguém, e não alguma coisa. Na altura julguei - e com razão, vim a saber mais tarde - que estava a ouvir o sistema circulatório da seiva dentro da árvore, como o sangue a correr pelas suas veias. Ninguém acreditou, se calhar porque nunca tinham prestado atenção, ou porque não tinha calhado. A sensação com que fiquei foi que a própria árvore, de algum modo, me estava a dizer “estou tão viva como tu”. Que tinha decidido revelar, a mim, que já conhecia bem, que desde pequeno fazia dela pouso, algo que hesitava em mostrar aos demais.

Nessa época procurava Deus incessantemente, orava e tentava encontrar a sua voz por entre a assembleia de vozes da minha psique. Fazia o possível para não o imaginar, para não criar um deus demasiado útil, demasiado personalizado e adequado às minhas necessidades particulares. Sabia que não ia ouvir uma voz de gente, palavras discerníveis - já na altura isso me parecia excessivamente conveniente. Tudo era um sinal divino, tudo o que acontecia era para eu interpretar, debater, reflectir sobre. Mas a voz desta árvore não tinha verdades, nem ordens, nem revelações ou respostas. De todas as orações, partilhas e grandes conclusões iluminadas, destes retiros e encontros, pouco me recordo. Mas desta voz, nunca me esqueço.

Algo que me incomoda em quase todas as religiões é a presunção de que não só Deus existe, como sabemos o seu nome, sabemos o que quer de nós, e sabemos o que pensa em relação àquilo que criou. Se calhar um deus é como uma árvore, que leva anos para mover um braço, para quem o nosso tempo de vida é como o breve borrão de uma mosca colorida a esvoaçar freneticamente, e como uma árvore, vê mais do mundo do que alguma vez veremos, exercendo a sua influência lentamente, numa escala e extensão temporal que dificilmente nos é compreensível. Talvez se trate até de uma espécie de mente, uma inteligência descentralizada, cujas sinapses são as interacções químicas que ocorrem entre tudo o que está vivo, desde às redes de fungos subterrâneas que as árvores de uma floresta utilizam para comunicar, até aos complexos ciclos de vida, desde uma micro a uma macro-escala, que mantêm a estabilidade de um ecossistema.

Se calhar, mas só se calhar, os antigos estavam mais perto da verdade, acreditando que deus era o vento, a névoa, os rios e a chuva; que era os pássaros e as árvores, e a própria vida - esta última, talvez, uma das coisas mais sobrenaturais e inexplicáveis que acontecem sobre a terra.

— Simão Martinez, pequeno borrão no mapa do tempo

Até para a semana!

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