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N E W S L E T T E R # 4 6

A Verdadeira Maionese

Caríssimos, é com muito pesar que vos informo que este vosso chateador semanal se encontra oficialmente empregado, das nove às cinco, e de forma lícita, algo verdadeiramente inédito, numa longa e distinta carreira de trabalho ao negro.

Acho que desde o secundário, já há uns dez anos atrás, que não tenho uma rotina, por assim dizer. Durante os tempos de faculdade, especialmente nos anos da depressão em que me enfiei, uma combinação fatal de horários nocturnos, ausência da marcação de faltas - e a dita depressão - levou a que deixasse de ter qualquer rotina horária minimamente repetitiva. A juntar a isto, sempre tive tendência a ser aquela personagem irritante que não ia às aulas e quando chegavam as avaliações ou entregas de trabalhos tirava notas excelentes. Para quê estar a perder tempo em transportes durante meses, quando podia, simplesmente, não dormir durante dois dias na véspera de um exame ou entrega, e tirar uma nota impecável? O trabalho de freelancer, que tem sido o regime com que tenho sobrevivido, pareceu-me o mais indicado para este meu perfil de chico-esperto, e de facto não é toda a gente que consegue viver assim, nas horas vagas, surfando a crista dos prazos, sem se passar dos carretos. O facto de já ser meio passado por natureza ajudou, como se tivesse, em míudo, caído no caldeirão da poção mágica - se bem que, quando era míudo, tinha mais aspecto de ter caído num caldeirão de bechamel.

Tornei-me, portanto, um verdadeiro pirata, um capitão da maionese, veterano na sua navegação. Por vezes, quanto mais tempo se tem, menos se faz, mas depois de não se ter horários durante tanto tempo, uma pessoa habitua-se a viver no caos, a ter de gerir o seu próprio tempo e fingir que tem prazos e sítios onde ir. O grande problema deste oceano viscoso é, no entanto, o de ser difícil pôr o pé em terra firme. O lavor nunca acaba, não existe uma separação entre tempo de trabalho e tempo de descanso, nunca mais tive aquela sensação que tinha, quando saía da escola, de chegar a casa e estar livre - apesar de na maionese ter mais tempo livre do que alguma vez tive nessa altura. O que acontece, é que o que quer que estejamos a fazer nos faz sentir como se devêssemos estar a fazer outra coisa, saltando de liana em liana numa selva de procrastinação. Não me interpretem mal: eu adoro a maionese, gosto de ter tempo para ir devagar, para pensar no que interessa e no que não interessa, na morte e na vida de inúmeras bezerras e de poder decidir como são os meus dias, tendo a liberdade para os aproveitar ou desperdiçar deliciosamente. Faço questão de estar sempre a aprender alguma coisa, desde filosofia a marcenaria, desde economia medieval à evolução da fisga - de nunca estar inactivo, até porque acho que não consigo, e não teria nada sobre o que escrever. E ninguém me dá ordens, ninguém me chateia. Mas nem tudo aquilo de que gostamos nos faz bem, dependendo por vezes da dose. Tal como a maionese, que nos meus pontos mais baixos gosto de comiscar com uma colher de chá, directamente do frasco.

Fig.1 O artista numa tarde bem passada, ponderando se deveria fazer da rua a sua nova sala, para tentar poupar na renda. Acabou apenas por pilhar o sofá, que até hoje reside no seu covil, onde não serve qualquer propósito.

De qualquer forma, está na hora de fazer soar as campainhas para o almoço outra vez, pelo menos durante uns tempos. De chegar a casa na hora dourada, pousar a mochila e ter algumas horas em que não tenho de me preocupar com grande coisa. De não suar em bica cada vez que chega um aviso de corte da luz ou da água. Já aconteceu, noutros trabalhos que tive, deixar completamente de pintar e desenhar e escrever - e como tal estou particularmente consciente dessa tendência, e determinado a evitá-la. Mais vale pintar uma hora por dia, do que não pintar durante um mês e ter um dia em que me dá para isso e pinto dez quadros de uma vez - coisa que já aconteceu.

A vida de artista requer uma disciplina interna, e capacidade de nos auto-motivarmos que noutras profissões não é tão crítica: alguém nos diz o que fazer, ou temos objetivos concretos de dia para dia. O caminho já existe, não é preciso uma catana para desbravar as ervas altas. Mas até na selva já existem trilhos, de catanadas anteriores, e de vez em quando dá jeito ter terra firme debaixo dos pés, mesmo que a vista não seja tão boa.

Não estou a dizer que sejamos alguma espécie de super-heróis, mas vivemos nesta vagueza poética, entre sonos e sonhos, para trazer ao mundo algo que valha a pena ver, para mostrar aos outros algo que valha a pena mostrar. Sacrificamos a normalidade, em parte, para poder fazer aquilo de que gostamos, aquilo que nos chama e para o qual não há um caminho ou direcção estabelecida, navegando as águas espessas de um frasco de Hellman’s, de velas içadas e espada nos dentes, e em parte porque estar perdido é melhor do que saber para onde vamos. Porque chegar a uma terra desconhecida e fazer algo de novo é absolutamente impagável, mesmo que seja só um ilhéu com meia dúzia de calhaus cagados pelas gaivotas, que mais ninguém tem interesse em visitar.

De vez em quando, enquanto artistas, temos sorte e encontramos uma terra prometida, fértil, onde ninguém ainda pôs os pés, e onde nos estabelecemos - uma terra na qual plantamos uma bandeira e dizemos ser nossa - mas eu, pessoalmente, prefiro estar sempre a navegar, pilhando e saqueando os arquipélagos da pintura aqui e ali.

E agora lixei-me, porque vos quero escrever todas as semanas, pelo que não vou conseguir mesmo fugir à vida de artista, por muito que só me apeteça chegar às seis e meia, e não ter de pensar em mais nada. Aliás, creio que sou incapaz dessa ausência de pensamentos. Quando mergulho o pincel na tinta estou apenas o dar continuidade a um processo que a minha mente já começou algum tempo antes. Existe um plano de fundo em que a vida, a experiência e a pintura são uma e a mesma coisa, que depois decido materializar, de forma consciente ou não. Sou agora designer das nove às cinco, mas artista, isso sou desde que acordo até à hora que adormeço - mentira - porque até a dormir o sou.

É fácil desaparecer na estabilidade, no fofo edredão da previsibilidade, mas um dia acordamos e a sensação é como a de acordar de uma sesta que se prolongou para além do devido - de repente é de noite, e… onde raio foi o tempo? Onde raio foi a vida?

— Simão Martinez, capitão do fundo do frasco

Até para a semana!

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Todas as semanas, obras que estão perdidas pelo atelier

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