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Temporada 3 — Episódio 1 de 43

Estamos de volta! Para inaugurar a Temporada 3 (que vem um tiquinho maior, com 43 episódios), trouxemos duas faíscas voltadas para dentro, cujo elemento fantástico é quase parte da construção dos personagens. É muito, muito bom estar aqui de novo no seu e-mail. 

Abaixo de cada faísca, você encontra uma ferramenta para atribuir nota ao que leu. Ao fim da temporada de seis meses, os textos mais bem avaliados serão cotados à tradução para o inglês — we also want to spark abroad! Pedimos que você avalie as faíscas recebidas — além de ajudar na classificação, a gente sabe que não está trovejando para o vazio. Aproveite também as notas autorais e as pequenas biografias após os textos para conhecer e interagir com esse pessoal talentoso. Boa tempestade de histórias pra você!

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Paula

H. Pueyo

 

Começou com uma folhinha no fundo da meia, verde e minúscula, solitária até um caule surgir ao redor do dedão. Paula encarou o ponto colorido. Deve ser fungo ou coisa assim, pensou, puxando a folha com duas unhas pintadas de rosa. Arrancou-a como erva daninha e pôs o sapato. O incômodo voltou no dia seguinte, agora enroscado em dois dedos, brotando da camada mais superficial da pele. São as plantas, resmungou. Passo tempo demais com as plantas.

Ir até o mercado de flores a faria sossegar a cabeça, então escondeu o dinheiro no forro vazio da bolsa e começou a se vestir. Primeiro, colocou a peruca loira, companheira de tantos espetáculos, e depois passou a base e o batom carmim, pendurou um par de brincos pesados nas orelhas, cobriu o gogó com uma gargantilha dourada, calçou os tamancos e fechou o zíper do vestido esmeralda, aprumada como quem visita um amante. Volto logo, disse a uma fileira de cactos, estalando um beijo no ar.

A comichão continuou dentro dos sapatos conforme a cutícula se partia e abria espaço para uma nova folha. Paula ignorou a ardência, admirando as flores coloridas que sorriam de volta para ela. Que nem lá em casa, pensou, as solas dos pés queimando como se estivessem assadas. Escolheu uma barba-de-moisés para pendurar no quarto e um girassol para enfeitar a sala.

No passado, Paula vivera apenas pelo teatro: as plumas e os paetês, as danças e os ensaios, as noites inquietas sem saber se os milicos acabariam com tudo de uma vez. Tempos difíceis, lembrou, arranjando as flores sobre a cabeceira da cama. O quarto tinha vasos no chão, nas estantes, na janela, na sacada. Ganchos dourados mantinham as samambaias na parede, e a luz do entardecer fazia o verde das raízes parecer mais escuro. Quarenta anos haviam se passado, e a vida que levava agora era diferente, talvez até calma. Nem sempre, Paula murmurou, deitada no colchão. Talvez algum dia.

O sapato de salto caiu no tapete e revelou um pé coberto de musgo. As varizes de Paula, púrpuras e azuis, escalavam suas pernas finas, e ela cobriu o pedaço de grama fofa com uma mão enrugada. Mover-se provava ser tarefa difícil no último ano, mas ao menos ainda tinha as plantas como companhia. Dracenas, palmeirinhas, violetas, margaridas, suculentas. Cactos de todos os tamanhos enfileirados na grade da janela e vasinhos espalhados pela cozinha: pimenta, alecrim, manjericão, hortelã, cebolinha, sálvia. Havia pouco espaço para caminhar pelo apartamento, e às vezes ela tinha de botar plantas em sua cama.

Paula tirou a peruca e fechou os olhos. Do couro cabeludo, brotaram gomos fechados que aos poucos se abriam sob o sol que entrava pela janela. Sentia como se tivesse dançado a noite inteira. A barba-de-moisés a olhava de cima. Boa noite, as plantas pareciam dizer. Uma folhagem densa alastrou-se pelos braços e pétalas caíram na almofada, brancas, vermelhas, amarelas. O cheiro doce de pólen encheu o ar, e Paula fechou os olhos. Boa noite, respondeu, e os botões viraram flor.

*

Notas Autorais: O conto foi publicado originalmente em inglês na Apparition Lit (30 de Outubro de 2019), em um dos concursos de mensais de ficção relâmpago da revista: apparitionlit.com/stories/paula

 

 

H. Pueyo

H. Pueyo escreve, traduz e se esconde, só saindo da toca para colocar histórias no mundo de vez em quando. Seus contos já apareceram em publicações em inglês, português e italiano, e podem ser lidos em revistas como Clarkesworld, Strange Horizons e Trasgo, entre outros.

Twitter: @hachepueyo
Site: hachepueyo.com


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Duas verdades e uma mentira

Miguel Dracul
 

 

Ao longo do dia, Érico não soube dizer se realmente queria ter ido àquela festa. Um monte de gente do colégio numa chácara, bebida e música alta: não eram coisas que lhe soavam atraentes nos últimos tempos. No entanto, não queria decepcionar seus amigos, ansiosos por vê-lo após quase um mês de distância. Além disso, Andrade queria que ele fosse, e o que Andrade queria, ele conseguia.

A noite havia terminado quando um idiota achou que seria uma piada divertida atirar Érico na piscina, deixando-o encharcado e furioso. Andrade o convenceu a não se desgastar brigando e ir para a casa dele, o que puderam fazer imediatamente graças à carona oferecida pela mãe de Heitor.

Os garotos entraram na residência sem chamar atenção e subiram para o quarto de Andrade. Érico se secou rapidamente e trocou de roupa enquanto conversavam. Andrade ficou ao lado do amigo conforme este fazia uso de seu guarda-roupa. Por fim, Érico segurou uma jaqueta em suas mãos. Era uma peça cara, de couro marrom, comprada em uma das viagens da família de Andrade para a Europa. A favorita dos dois. 

— Você tá muito lindo — Andrade elogiou. Diante do riso envergonhado de Érico, reforçou: — Que foi? Tá lindo mesmo, não é a década de 60, eu posso elogiar meu melhor amigo.

— Você é o mais bonito aqui — Érico desconversou, olhando para uma fotografia dos dois em um porta-retrato em cima da cômoda.

Eram amigos desde os seis anos de idade e, mesmo com outras tantas amizades, sempre permaneceram os dois. Juntos.

— Talvez eu tenha sido, mas com certeza você tomou meu posto — Andrade sorriu. — Devia ficar com a jaqueta. Na verdade, você sabe que o que quiser é seu, né? Vou sussurrar na orelha da minha mãe para ela deixar contigo.

A atenção dos dois foi tomada pelo som de três batidas na porta entreaberta. Na entrada, dona Clarice sorria. Embora fosse uma senhora bonita, parecia cansada, e seus olhos estavam inchados.

— Eu sempre achei particularmente doce vocês vestindo as roupas um do outro desde criancinhas — ela disse com carinho. — Mesmo parecendo tão diferentes... não tem um dia que eu não agradeça a Deus por essas amizades tão bonitas do Andrade.

— Mamãe tá um pouco emotiva hoje — Andrade zombou, ao que sua mãe balançou a cabeça e deixou cair uma lágrima.

— Você está lindo, Érico — finalizou Clarice, virando-se para sair.

— Obrigado, dona Clarice. Daqui a pouco eu vou embora — o rapaz disse, educado.

— Mãe, acho que o Érico devia levar algumas roupas minhas para casa — Andrade sugeriu.

Clarice se virou e falou em voz alta, olhando para o amigo do filho:

— Você pode ficar quanto tempo quiser. E pegue para você qualquer coisa que desejar — ela concluiu, voltando para o andar inferior da casa.

Imperturbável, Andrade sentou-se na beirada da cama, encarando o espelho, e lançou:

— Vamos jogar um jogo. Duas verdades e uma mentira. Você começa.

Érico balançou a cabeça, dando-se por vencido. Revirou os olhos como se fingisse estar enfadado, sentando-se ao lado do amigo antes de começar:

— Tá bem... Ao contrário do que eu esperava, consegui me divertir hoje à noite. Eu não me sinto mais triste o tempo todo... e as coisas não parecem ter mudado tanto — ele disse, sem saber ao certo se seguiria as regras do jogo.

— Jogou melhor do que eu pensei... — Andrade admitiu, claramente satisfeito. — Você com certeza se divertiu hoje e, se isso for verdade, também não está sempre triste, logo... 

— Pegou a mentira — Érico reconheceu, sem coragem de encarar o amigo. — Sua vez.

— Fica fácil descobrir se você coloca a mentira no final — Andrade brincou. Em seguida jogou sua rodada. — Você é meu melhor amigo. Eu menti para você quando disse que estaria sempre ao seu lado. Eu estou com medo do que está prestes a acontecer.

— Você nunca tem medo de coisa nenhuma... — Érico afirmou, nada resoluto, o estranhamento transparecendo em sua voz.

— Errado. Minha vez de novo. Eu estou profundamente incomodado com a possibilidade de ser esquecido por meus amigos, eu amo você como um irmão...

Érico sentiu a cabeça do amigo deitar-se sobre seu ombro, da maneira afetuosa como ele sempre fazia, mas algo naquele movimento o estava deixando inquieto. Aguardou pela mentira, confiante de que as duas primeiras afirmações haviam sido sinceras.

— Minha morte foi um acidente.

Os olhos de Érico se arregalaram, mas o rapaz não foi capaz de expressar qualquer reação além disso.

— Foi bom poder aproveitar mais esses dias com você, Érico, eu realmente acho que você vai ficar bem, então preciso ir.

Por um breve instante, Érico se viu tomado por um abraço firme, seguido por um beijo no rosto. Automaticamente, percebeu-se muito consciente de que era capaz de sentir o cheiro de Andrade, mas logo lembrou-se de que estava em seu quarto e vestindo suas roupas.  De súbito, começou a chorar.

Talvez alguma parte ingênua dele acreditasse que Andrade ficaria para sempre a seu lado e, quando também morresse, que seguiriam juntos para o além. Não havia se preparado para uma despedida.

— Depois que eu for embora, haverão outros tentando falar com você. Prometa para mim que será cuidadoso. Espero que demore muito para nos encontrarmos.

— Quem fez isso com você? — Érico perguntou em meio aos soluços. Não havia se dado conta da proporção de suas emoções.

— Garotos mortos não contam segredos.

— Não! Isso não é um filme! Me responde! — exigiu, sem conseguir se controlar.

— Meu pai é um escritor, você devia esperar algum mistério. Adeus, meu querido.

*

Dona Clarice, provavelmente atraída pelo barulho, entrou no quarto e me abraçou, seus olhos inundados. Ela havia perdido o filho fazia pouco mais de um mês, afogado na piscina de casa. Um triste acidente, um escorregão, a cabeça bateu na beirada...  e eu havia acabado de me despedir do fantasma de meu melhor amigo após passar quase todo o tempo desde sua morte com ele ao lado. Eu estava inconsolável. Eu estava furioso. Não havia nada que eu pudesse fazer.

Fica fácil descobrir se você coloca a mentira no final.

*

Notas Autorais: Retratar relações onde rapazes possam demonstrar seu afeto fora do espectro sexual é um de meus objetivos na escrita. Essa história surgiu de uma mistura entre esse objetivo e uma maratona de Pretty Little Liars. Os três personagens foram batizados com nomes de escritores por uma brincadeira, trazendo os nomes daqueles que criam histórias para personagens. Andrade e Érico foram criados para esta Faísca, mas continuaram sussurrando em meus ouvidos para que eu contasse mais de suas histórias. Logo um conto sobre eles será publicado pela Morse Editora. Dedico esta história ao meu querido amigo, Renan Biceglia.

 

Miguel Dracul

Miguel Dracul nasceu em Campo Grande — MS, mas cresceu em Presidente Prudente — SP. Psicólogo formado pela UNESP no campus de Assis, criou em 2013, durante sua graduação, o blog Obscuridade e Clareza, onde partilha seus pensamentos, desabafos e invenções. RPGista e fã de seriados, Dracul busca inspiração em ambos para criar personagens e desenvolver narrativas. Também é colaborador do site Seleções Literárias, divulgando editais para escritores, e produtor editorial pela Razzah Publishers. Seus trabalhos mais recentes podem ser lidos nas antologias Taverna Bode Mágico, Além do sangue (ambas pela Sem Tinta) e Decididos — uma celebração bissexual (pela Margem).

E-mail: migueldracul@outlook.com
Blog: trueobscuridad.blogspot.com
Twitter: @migueldracul
Facebook: facebook.com/migueldracul
Instagram: @migueldracul


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