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Sobre pressa, opiniões instantâneas e notas de 0 a 10

um bom poema leva anos 
cinco jogando bola,
mais cinco estudando sânscrito,
seis carregando pedra,
nove namorando a vizinha, 
sete levando porrada, 
quatro andando sozinho, 
três mudando de cidade, 
dez trocando de assunto, 
uma eternidade, eu e você, 
caminhando junto

 

— Paulo Leminski

 

1.

Em 2017, depois de ler em diversos lugares que Mad Men era a melhor série já feita, eu fui assistir ao primeiro episódio. E dormi nos primeiros minutos.

Mas, como eu não sou de desistir fácil, tentei assistir de novo. E dormi mais uma vez.

E foi só no decorrer de algumas semanas, com uma persistência que tenta negar a decepção, que consegui terminar o primeiro episódio — pra, ao fim de sete temporadas, eu chegar à conclusão de que era minha série favorita.

Depois disso, assisti o primeiro episódio inúmeras vezes — e apreciei cada detalhe da escrita, da caracterização dos personagens e cenários, da atuação e da trilha sonora.

De forma semelhante, foi só uns dias atrás que eu consegui ouvir Frank Ocean e gostar, apesar do álbum Blonde ter quatro anos. Antes, eu tinha achado paradão demais pra mim. E hoje, mesmo achando incrível e tendo escutado diversas vezes, não comecei sequer a tentar entender as letras.

As séries e as músicas, como o poema do Leminski, levam anos — o que pode ser um problema pra muita gente.

Inclusive já foi pra mim — e volta e meia o é. Eu já desisti de inúmeros filmes, livros e álbuns por causa da impressão inicial, colocando na caixinha do “odiei”. E não é nem que isso seja relevante — é só entretenimento, tá tudo bem gostar e não gostar. Mas eu acho importante refletir em como o imediatismo se torna uma resistência ao que, em outro momento, gostaríamos. 

 

2.

Um dos grandes problemas das redes sociais é que colocaram a gente ainda mais em circunstâncias de gosto/não gosto. Gostar de uma música depende não só da qualidade técnica do material, mas da minha bagagem cultural, do momento que eu tô vivendo e da minha paciência no dia.

Quando eu publiquei o texto de volta da newsletter, o Guizann, que é artista plástico, falou sobre essa instantaneidade. Ele demora semanas pra pintar um quadro — e, quando posta no Instagram pra quem não pôde ver ao vivo em uma exposição, em um segundo as pessoas já decidem se gostaram ou não (nesse tempo verbal mesmo).

Como se absorve um trabalho de semanas em um segundo? Não interessa. Porque essas pessoas têm outros milhões de posts pra ver hoje — e precisam tomar decisões cada vez mais rápido pra conseguir chegar ao final do feed e se livrar do FOMO.

São tantas informações que é difícil prestar atenção em algo pra além do superficial. E é aí que tá o problema: receber muita informação acaba sendo bem parecido com não receber informação nenhuma.

 

3.

É óbvio que as plataformas valorizam esse imediatismo. O Twitter pergunta o que você tá pensando pra você dizer, de forma instantânea e irrefletida, sua opinião sobre um assunto qualquer dos trending topics — seja um debate sério, uma série nova da Netflix ou o namoro da Louis com o Vuitton. 

É por isso que eu já falei tanta bobagem — não reclama comigo, reclama com o Jack Dorsey.

Aos “produtores de conteúdo”, os cursos de marketing digital dizem que a chave é a constância — é mais sobre constância do que sobre qualidade, dizem.

Eu sou desconhecido demais pra ser perseguido por paparazzis — mas o Instagram, vestido de coach, me diz: “Seja seu próprio paparazzi!” E tá lá a câmera do story, me esperando prontinha pra eu expor minha vida pessoal, sem acrescentar nada a ninguém, e chamar isso de conteúdo.

E é assim que, pouco a pouco, o que as pessoas chamam de conteúdo é cada vez mais substancialmente vazio — e a informação é cada vez menos informativa, já que o foco das redes não é que sejamos ouvintes, mas sim protagonistas. Ou pelo menos que tenhamos a sensação de protagonizar.

Eu já achei que a democratização da informação faria as pessoas se aprofundarem mais nos assuntos que as cercam, mas o que a gente vê hoje é uma avalanche de dados absorvidos apenas de forma superficial. Em vez de especialistas em assuntos específicos, outrora de difícil acesso, a democratização da informação tem sido usada pra fomentar generalistas em coisa nenhuma.

Pra enxergar isso, é só ver os canais no YouTube. Se, no começo, a gente viu a explosão de canais muito específicos — mesmo de coisas bobas, como o How To Basic, que tinha uma proposta e se ateve a ela, ou o The Needle Drop, voltado pra música, que criou um formato e se atém a ele —, hoje vemos que a receita pra popularização é o conteúdo focado nos trending topics. Canais maiores, como o do Felipe Neto, tem um conteúdo fundamentado nos reacts. E aí surgem termos como slow content ou conteúdo evergreen pra tratar como exceção e tendência o que devia ser normal.

Volta e meia no Twitter eu faço uma piadinha do tipo “sei que vocês devem estar se perguntando minha opinião sobre [...]”. E eu acho isso engraçado porque minha opinião não é importante. A sua opinião sobre o relacionamento do Vitão e da Luísa é irrelevante — e acho que a de qualquer pessoa é. E isso falando só de fofoca.

As redes sociais se alimentam do seu complexo de se sentir relevante e urgente, mas a gente não é nem relevante nem urgente. Você é relevante, sim, mas só pras pessoas próximas de você — e, se não aprender a ouvir mais do que falar, nem pra elas vai ser.

 

4.

Pesquisas, realizadas há décadas, mostram que essa tendência não é nova. Uma pesquisa da década de 70, citada aqui, mostrou que todos os entrevistados se consideravam melhores ouvintes que seus colegas, que, segundo eles, ouviam pouco. A gente é muito melhor em falar do que ouvir — e, embora essa constatação não seja nova e tenha sido alvo até de versículo bíblico, as redes sociais nos deram a plataforma perfeita pra falar sem escutar.

Eu não sou o produtor de conteúdo mais assíduo e regular que existe, e isso se deve não só à procrastinação, mas a um forte questionamento interno:

Pra quê?

Pra que eu devia produzir conteúdo, se há pessoas dizendo o mesmo que eu tenho vontade de dizer? Não é melhor eu só compartilhar o que foi dito e poupar minha energia pra outra tarefa?

A pesquisadora Michele Müller, no artigo da HuffPost que linkei acima, definiu o Fear Of Missing Out de forma perfeita: “O FOMO é o retrato de nossa contraditória condição de querer participar de tudo, mas não conseguir dedicar atenção a quase nada. E, em contrapartida, não termos ninguém que nos escute de fato.”

E eu acrescento: acreditar em curtidas como forma de medir ‘quem nos escuta de fato’ é tão ilusório quanto pedir pra Siri dizer que te ama.

Um amigo, sozinho, é mais útil que dezenas de transeuntes digitais que te dão só uma atenção capenga. 

Minha luta é contra a vontade de protagonizar tudo e é por isso que eu advogo pela paciência.

 

5.

Todo domingo à noite eu fico na dúvida se leio um livro novo, se assisto um filme ou uma série. Esse entretenimento demanda tempo e eu acabo não fazendo nada disso, já que nas redes sociais eu consumo muito mais conteúdo em menos tempo — ou pelo menos essa é a impressão. Na prática, as redes sociais são só um ócio não-ocioso — ou seja, a gente não faz nada, mas com o cansaço mental de ter feito. E, pra não ficar ocioso, a gente pega o celular a cada intervalo entre tarefas pra não deixar o cérebro descansar sem estímulos.

Eu quero ter paciência de novo. Eu quero ler um livro legal sem o impulso de replicar as informações dele como opiniões minhas. Eu quero pensar mais do que tuitar. Eu quero ouvir mais do que escrever — e, mais importante que isso, ouvir as pessoas certas, não uma horda de tuiteiros raivosos ou comentaristas do G1.

A única hora do dia em que eu escapo da internet é minha favorita: o banho. É o momento em que, desocupado, livro minha cabeça dos estímulos. E aí as ideias correm soltas, sem que eu me preocupe em colocá-las em caixinhas. Eu posso deixar minhas ideias e opiniões entrarem em conflito num mar de devaneios, sem que haja um julgamento reducionista em cima disso.

Como Michael Scott, eu às vezes começo uma sentença sem saber como vou terminá-la e torço pra encontrar o final no decorrer dela — e é o caso desse texto. Mas vamos adiante porque já te ocupei tempo demais e você tem stories de 225 pessoas pra assistir ainda hoje.
 

6.

Eu já falei aqui sobre minha tendência de usar “odeio” como superlativo. Mas, de uns tempos pra cá, eu comecei a evitar isso por pensar na constatação óbvia que eu tava ignorando: não gostar não é o mesmo que odiar, assim como discordar de alguém não quer dizer necessariamente que você concorda com o “inimigo”. Eu preciso admitir, pra mim mesmo, que eu não tenho opinião sobre a maioria dos assuntos, importantes ou não — então, se eu não gostei de algo, eu não preciso “me posicionar” dizendo que tenho ódio. Eu só não tenho opinião, não sei se gostei, se não gostei, se tá bom, se tá ruim. No decorrer do tempo eu penso nisso, se for necessário.

Se eu assistir Mad Men hoje, talvez minha experiência seja outra — e pra ser sincero eu não lembro de muitos detalhes além de episódios específicos. 

O exercício que eu tenho feito é parar de classificar o que eu consumo entre “gosto”/“não gosto” ou de 0 a 10. Eu me esforço pra falar sobre características da obra e sensações que eu tive consumindo o trampo. Inclusive, tenho um texto sobre exercitar essa capacidade (que só enviei pros assinantes do canal do Telegram, mas talvez eu envie aqui na newsletter se eu considerar relevante). Se um som não me pegou agora, não tem problema: agora eu já conheço, posso ouvir de novo daqui uns meses e ver o que vou achar. Se eu não sei nada sobre um assunto hoje, não preciso correr pra comprar cinco livros, devorá-los e então formar minha opinião; eu posso fazer isso no decorrer dos anos, porque eu sou novo demais ainda.

Você alguma vez foi se informar sobre a biografia de uma pessoa só pra cancelá-la com conhecimento de causa? Ou, pior, já participou do motim virtual sem nem conhecer o réu em questão?

Quem lucra quando você se informa só pra se posicionar sobre um assunto dos trending topics?

Depois de lançar o walter igor, fiquei impaciente querendo receber feedbacks sem perceber que esse não é um livro do tipo de que se lê do dia pra noite e emite um parecer — talvez nenhum seja. Pode ser que a pessoa só leia e goste da leitura daqui a dois, três, cinco anos, ou talvez nunca, e beleza. Não adianta esperar uma reação imediata.

O importante é resistir ao impulso de classificar tudo e aprender a absorver e pensar sobre o que absorvemos com paciência.

As redes sociais alimentam essa noção de que tudo precisa ser instantâneo e toda notificação deve ser atendida assim que pipoca na tela. Por essas e outras, eu acho maravilhoso desativar notificações: não tenho no Twitter nem no Instagram, e tô pensando em apagar o Instagram e ficar só com o app Threads, que serve pra conversar com os close friends. Não tenho o aplicativo do Facebook há tempos. Deixo o celular no modo não perturbe o dia inteiro. Filtro o conteúdo sempre que possível.

E tudo isso é uma tentativa de resgatar a paciência que um dia eu tive.

divulguem o doc The Social Dilemma

Se tu quiser compartilhar esse texto com alguém, é só pegar o link aqui

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