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escuta o que cê tá falando

Enchendo de petróleo
os bancos de dados,
transformamos a vida
numa rotina burocrática,
chata e administrativa
como num Kafka em que a busca
é pra ser o novo aristocrata.

Não sei quem cria a dívida,
eu sei que a gente paga.

walter igor 


1.

Na volta da newsletter, após um hiato de seis meses, eu resolvi deixar a poesia de lado e fazer um longo desabafo sobre redes sociais e seus efeitos.

Um dos assuntos que eu toquei foi o papo de: apoie seu amigo empreendedor/artista.

É sempre complicado falar sobre os problemas de negócios que são 100% honestos e, ao que tudo indica, não fazem mal a ninguém. Mas eu me vejo no papel de ser o chato que levanta dúvidas e tece críticas porque se uma ideia não resiste a elas talvez seja uma péssima ideia.

Hoje, muitos dos meus amigos e amigas tão tentando se sustentar em trabalhos pelas redes sociais. Muitas das minas fazem vídeos sobre maquiagem, desafios, dicas pra cuidar da pele etc. E os moleques, no geral, tão na onda do marketing digital, empreendedorismo e educação financeira. 

Beleza. São atividades normais. Surgem novas tecnologias, novas profissões emergem. Mas, já que a gente vive num sistema capitalista governado por humanos que estão tão ou mais perdidos do que nós, as coisas são mais complexas.

E aí surge uma série de comportamentos esquisitos:

  • A burocratização do cotidiano;
  • A exposição da rotina diária como forma de conteúdo;
  • A perseguição do objetivo de viver do “conteúdo” ou do “empreendedorismo”;
  • A fé no sonho de trabalhar com o que ama;
  • A crença de que se ama o que se ama.

Eu vi pessoas se dedicando dia e noite por algo que nunca deu certo (e talvez nunca dê); eu vi gente tendo ataques de ansiedade por não conseguir rentabilizar o trabalho nem arrumar uma forma de renda. E por enquanto eu tô só falando de mim mesmo. 

Hoje eu prefiro ver o Instagram mais como uma vitrine do que como uma estratégia de marketing. E acho que é legal falar um pouquinho sobre isso.

 

2.

Eu resolvi desinstalar o meu app do Instagram. Mas, enquanto eu entrava diariamente, era frequente ver pessoas pedindo desculpas ao público. Pedindo desculpas por não ter postado conteúdo, pedindo desculpas por não ter seguido a programação, pedindo desculpas por ter adiado um post.

Aí eu me pergunto:

Como tá a saúde mental de uma pessoa que não posta story há apenas 6h e volta dizendo “perdão pelo sumiço”?

Minha impressão é que as redes sociais viraram um reality show. E, como em todo bom reality show, só a emissora e uma minoria de participantes se beneficia — a primeira, com os anúncios; a segunda, com o prêmio que todo mundo entrou esperando receber.

Quando, algumas décadas atrás, a gente via os famosos na televisão, a gente podia até sentir uma pontinha de inveja e um desejo de estar naquela posição. Mas era algo distante dos nossos interesses e áreas de atuação, tornando tais carreiras restritas a um pequeno grupo de pessoas que ou se esforçava muito ou contava com privilégios e rede de contatos — então o desejo da gente, do povão, era só momentâneo, e nunca nos foi vendido como uma carreira comum que deveríamos perseguir.

Meu pai era camelô. Ele sempre quis seguir a vida dele como comerciante e hoje tem uma loja. Então, por mais que ele sentisse essa admiração pelas pessoas na telinha, não era algo capaz de consumir sua energia e ao qual direcionaria esforços.

A internet, no entanto, trouxe a fama e o dinheiro pra perto de cada um de nós. A Amanda Melo, fotógrafa do meu livro, disse em resposta à minha newsletter que “a internet trouxe uma falsa viabilização de tudo”. E é isso.

A gente vê uma pessoa comum, igual a nós, fazendo sucesso e ganhando dinheiro. E aí surge alguém que criou um curso que ensina, passo a passo, como podemos adquirir o que esses famosos bem sucedidos têm.

E aí tudo parece possível:

  • Quer ser famoso? É possível.
  • Quer ser rico? Moleza.
  • Quer trabalhar de casa? Falou com a pessoa certa. É só seguir o meu passo a passo.

Um ano depois, com metade da saúde mental que você tem hoje, vem a constatação: deu tudo errado e se pá não era tão fácil quanto te convenceram que era.

 

3.

É sempre bom pensar na origem das ideias que compõem o nosso zeitgeist — a positividade exacerbada e imperativa, a crença de que somos capazes de tudo, desde que nos esforcemos, e a decepção inevitável como consequência dessas concepções.

Eu tô lendo A classe média no espelho, do sociólogo Jessé Souza, e lá ele diz que as pessoas tendem a achar que suas ideias são naturais e individuais, quando em boa parte das vezes são só invenção humana e construção social histórica. Entender que dificilmente uma ideia é 100% nossa e olhar pra sociedade, pra história até aqui, é essencial pra descobrir de onde vêm nossas vontades e sonhos.

Eu trabalho na área de marketing digital (e eu nem gosto de dizer isso em voz alta pra não ficar deprimido). Com a crença equivocada de que poderia aprender tudo em cursos de 4 horas, eu me formei um "produtor de conteúdo" — por causa da infindável bagagem teórica e acadêmica que eu adquiri em algumas horinhas, óbvio. 

Uma das dicas fundamentais da cartilha do marketing de conteúdo e do marketing de afiliados é a seguinte: encontre um nicho e crie um produto pra ele.

E note que essa dica não diz pra usar o conhecimento que você adquiriu na faculdade, nem a prática de anos de experiência. Não diz sequer pra você estudar, dominar e se tornar especialista no assunto. A dica é: crie.

Então é comum que alguém que nunca fez nem um curso profissionalizante, nem trabalhou em nada, seja incentivada a pegar informações sobre um nicho em alguns ebooks e blogposts e, com isso, criar um curso online do zero. Ou seja, professores de assuntos que não dominam. E, resumindo, isso nos leva ao momento em que estamos, onde diversas pessoas dizem “eu quero criar um curso, mas ainda não decidi o nicho”.

Eu sou redator de conteúdo, então sei que é plenamente possível agir como se eu entendesse de um assunto que não domino. Inclusive já me doeu ser pago por isso — mas aí já é outra história.

O ponto é que as pessoas da minha idade, possuídas por esse zeitgeist, aprendem em cursos online de marketing digital os mesmos princípios e dicas.

O mesmo ocorre com o marketing de influência. As pessoas, que antes usavam o Instagram como mera rede social, são incentivadas a investir na confiança que já possuem e desenvolver poder de persuasão pra venderem a si mesmas como vitrine e publicidade de pequenas marcas. E aí, no pacote, vem a crença de que todos vão conseguir se sustentar nesse ramo desde que se esforcem.

Essas pessoas se rotulam com as profissões da década: produtor de conteúdo, influencer, empreendedor, CEO de MEI, investidor de troco de pão e por aí vai. Criam rotinas, planilhas e programações pra inundar de conteúdo a internet, que já é o próprio oceano pacífico — e H2O não é tão diferente de H2O.

É nesse cenário que você incentiva seu amigo a insistir na promessa que ele recebeu de se sustentar produzindo (ou replicando) conteúdo no Instagram. E eu tô sendo otimista falando apenas de “se sustentar”, porque têm a chance de ele estar ainda mais iludido com certo marketeiro barbudo dos anúncios no YouTube, que diz que seus clientes ganham 20 mil reais mensais com o IG.

 

4.

Talvez o amigo que você tanto apoia esteja batendo a cabeça e espanando os parafusos da própria em busca de um objetivo que nunca vai se concretizar. E, em vez de ajudar, você dá a ele um apoio cego, que não passa de um compartilhamento nos stories que serve só pro teu próprio alívio moral de dizer “eu ajudei”.

E eu digo isso também por experiência própria, como amigo que apoia e como amigo apoiado.

Não bastasse isso, talvez você sustente também o discurso moralmente repressor de “ain, mas não custa nada, vocês que não apoiam são egoístas”.

As redes sociais criaram essa forma de gostar passiva. Pra você se considerar amigo, basta curtir todos os posts, comentar alguns e receber isso de volta.

Quando falam de apoio, é disso que falam. Porque não custa nada, né? Mas se o teu apoio como amigo é igual ao apoio de um desconhecido interessado — com a diferença que o desconhecido compra —, será que dá pra chamar isso de apoio de amigo? Sei lá, tô só pensando.

Acho que você quer e faz mais que isso.

Eu sigo pessoas que são mais entusiastas em apoiar os amigos que uma mãe coruja seria. O problema é que elas têm mais amigos que um aluno do ensino médio que faz camiseta “do terceirão pra vida” — e aí o story vira uma epidemia de negócios e peças de arte aleatórias, sem nenhum crivo de qualidade ou gosto pessoal.

Resultado? Pulo todos os stories. E todos os outros fazem o mesmo, segundo uma pesquisa do Data Kalew.

E aí eu reflito com meus botões: de que adianta “apoiar” tantos amigos se, na prática, isso se parece tanto com não apoiar nenhum? Se seu apoio é só um alívio moral pra dizer “eu apoiei”, não era melhor fazer isso de forma privada com uma mensagem?

Pra ninguém dizer que eu só reclamo, dessa vez eu trouxe algumas sugestões.

 

5.

Comercializando meus poemas, eu achei que tinha um número considerável de leitores, até perceber que uma boa parte deles eram amigos bem intencionados. São amigos, compartilharam meu produto, mas não são meu público de fato. Agora que eles apoiaram, eles não tem grande interesse em tirar dinheiro do bolso pra comprar poesia.

Aí já é apoio demais, né.

Isso fez com que eu perdesse muito tempo com o público errado.

Quando um amigo começa a produzir conteúdo sobre motopeças — ou entra num modelo de negócio de baixo risco, como ser um revendedor, sem precisar de estoque —, ele não quer o compartilhamento de blogueiras de maquiagem. Ele precisa de um público ávido pelo motociclismo. Não faz sentido pedir que as pessoas comprem o que não foi feito pra elas pra apoiar o empreendedor do seu círculo social.

Talvez seu tempo seja melhor aproveitado auxiliando seu amigo a encontrar o público dele — o que não envolve ser o único a curtir todos os posts. Compartilhar — pra ver se, entre seus seguidores, há alguém do público do seu amigo — não custa nada, mas existem inúmeros negócios que nunca saíram dessa fase.

Nem você nem seu amigo podem lamentar pra sempre se der errado. Se o negócio não passou da fase incipiente, às vezes não foi falta da sua preciosa e inestimável curtida. Talvez a ideia seja ruim mesmo. E você precisa incentivar seu amigo a analisar a circunstância e seguir em frente.

Aceitar uma derrota não é o fim do mundo. O problema é ficar insistindo em algo que já deu errado há muito tempo — te privando de olhar pra oportunidades muito melhores.

E aí somos levados a outro ponto.

 

6.

Eu acho que descobrir o que seu amigo quer, por mais difícil que seja, é um bom começo. Nós somos constituídos por genes, construções sociais e conflitos internos — e, uma vez adultos, é humanamente impossível rastrear a origem exata de cada ideia nossa. Mas é recomendável que ele faça uma análise crítica.

Será que ele realmente quer aquilo? Ele olhou pra outras oportunidades? Ele tá seguindo o que parece ser o caminho mais fácil? Onde ele busca informação? Ele tá em busca do que o círculo social dele enxerga como uma carreira aceitável? Quais são as opções? E se der errado? Qual é o plano B? E o plano C? Ele estudou a ideia? Ele se planejou? 

Quando um amigo chega com uma ideia de negócio, eu sou disposto a ajudar de qualquer forma que seja possível. Precisa de um site? Te ajudo. Precisa escrever a ideia? Vambora.

Mas, quando ele deposita suas expectativas em uma coisa só, como eu fiz com a poesia, eu sugiro que você faça indagações pra ajudar seu amigo a se entender. Uma terapia resolveria isso, né. Ou um coach, se teu amigo tem muito dinheiro pra jogar fora. Só que, se você quer apoiar de verdade, pelo menos se certifica de que seu amigo não tá entrando numa furada e que você não vai ser o chute fatídico a empurrar ele pro buraco.

 

7.

O objetivo de ter um bom emprego foi substituído por correr atrás dos sonhos — seja lá o que isso signifique. A gente vive nesse cenário de desinteresse por profissões tradicionais, vistas como inferiores por não atenderem ao requisito de “trabalhar com o que ama” nem à obrigação de trabalhar “pelo propósito maior”.

É fácil — e lucrativo — um vendedor de curso me dizer que eu posso viver de arte, que basta seguir o caminho e me esforçar. Acontece que, revirando mensagens antigas, eu vi que em 2015 eu tava no mesmo papo que eu tô hoje: impopularidade do meu trampo e falta de grana. Era uma conversa com um amigo com muito mais ideias que eu e livros e livros escritos na cabeça que ele nunca colocou no papel e, infelizmente, morreram com ele quando ele se suicidou.

Eu aceito que digam que eu escrevo mal, mas não aceito que me chamem de preguiçoso — não na arte, pelo menos. 

Mas o trabalho não depende só de esforço — quem dera a vida real fosse formulaica desse jeito.

Eu tive alguns breves surtos por não conseguir tirar grana real da poesia. Vendi meu livro, criei um canal no Telegram. E aí eu vi que viver de arte não devia ser sequer meu plano B — devia permanecer como hobby e só sair dessa posição na minha vida caso se mostrasse mais rentável que um emprego de carteira assinada, ainda na condição de negócio paralelo. 

A única possibilidade que eu tava enxergando era a mais furada de todas. Mas felizmente eu me curei desse breve delírio e agora tô com minhas continhas pagas num emprego legal em que eu escrevo sobre um assunto que acho importantíssimo.

Mas tem gente que vai dizer que é feio "desistir de um sonho" e ter um emprego comum. Que isso é mediocridade. Que você precisa trabalhar com o que ama, guiar-se por um propósito e deixar um legado pro mundo. 

Se seu amigo tá em busca do sonho dele sem ter como plano B uma forma previsível de se sustentar financeiramente — como um emprego CLT ou pais ricos —, é bom você se preparar pra daqui a alguns meses convencer ele a fazer uma avaliação psiquiátrica. E talvez até ajudar ele a comprar antidepressivo.

É nesse buraco que a nossa geração tá se metendo.

E eu tenho dois pontos de vista divergentes sobre isso:

Enquanto um lado meu diz: “Eles são adultos e eu não sou pai de ninguém, então eles que se virem”, outro lado diz que é necessária responsabilidade quando eu incentivo alguém a tomar ações cujas consequências não vou sofrer.

 

8.

“Ah, Kalew, meu amigo te chamou de pessimista, isso desmotiva ele.”

Se ele depende do otimismo e da aprovação alheia, incapaz de pensar criticamente e agir por si próprio, já vemos aí um sinal vermelho. Nesse caso, se pá é melhor ele desistir memo.

Ooooooou você pode só compartilhar o post dele sem pensar em nada disso. Cada um que cuide da própria vida. Segue o jogo.

isso que você sente talvez não seja normal - faz terapia e avaliação psiquiátrica

Se tu quiser compartilhar esse texto com alguém, é só pegar o link aqui

E me segue no Medium que eu tô postando várias coisa lá e tá vindo uns projeto legal

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