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3/10 a fic

[...]

Eu cresci nessa letargia
que me impedia de entender
como real a realidade
que assolava esses dias,
como se soubesse estar
num Show de Truman
no meio de mais uma
delusão solipsista.

[...]

 

[sem título, 2021]

 

8.

Uns dias atrás eu li A morte e a morte de Quincas Berro D’água, do Jorge Amado. A editora liberou os livros dele de graça e eu, aluno indisciplinado que nunca foi afeito às indicações curriculares, resolvi lê-lo só agora, na terceira idade.

Quincas é um baiano de meia idade que resolveu meter o loco e viver uma vida de boêmio pelas ruas de Salvador. Quando morre, seus amigos se convencem de que ele tá vivo e o carregam no melhor estilo Um morto muito louco pra uma última noite de farra, onde morre pela segunda vez. Por isso “a morte e a morte”: a primeira oficial, a segunda imaginada.

No posfácio do livro, o escritor Afonso Romano Sant’Anna revela que a história é baseada em fatos. Ou seja, Quincas realmente existiu, mas com outro nome: Cabo Plutarco.

Em vez de baiano, o Quincas da vida real era cearense. Em vez da aventura do morto muito louco se passar em Salvador, se passou no Rio de Janeiro.

E aos poucos Sant’Anna vai revelando os detalhes das histórias (várias) que originaram a novela de Jorge Amado.

O que me chama atenção é uma frase que Afonso diz em dado momento (com grifo meu):

“Estou desmistificando o livro? Nunca. estou tornando densa, intrincada, rica e sedutora a relação entre ficção e realidade. Estou remitificando a vida.”

E é sobre essa fronteira entre ficção e realidade que eu quero falar.

 

7.

O fetiche pelo realismo na arte foi superado há séculos. Mas, graças aos objetivistas — e aos ignorantes —, esse conceito volta e meia vem à tona.

Se você frequenta o Twitter, já deve ter se deparado com um tuíte criticando a obra Abaporu, da Tarsila do Amaral, colocando-a como inferior a alguma pintura renascentista. A lógica que seguem é que a arte é a representação do “belo” (não o cantor), e que, por ser “feio”, Abaporu não é arte. Ou, se for, é inferior.

Mas esse conceito já começou a ser questionado na própria época da Alta Renascença, com o Maneirismo, que passou a usar assimetrias e uma forma menos eugenista (risos) de representar o mundo.

Boa parte da graça da pintura realista se perdeu com a invenção da câmera fotográfica. Eu admiro a capacidade técnica de quem pinta um quadro hiperrealista, mas não entendo o valor artístico disso se uma foto em menos de um segundo cumpre o mesmo objetivo: mostrar a realidade como ela é e em detalhes.

Eu admiro de verdade a técnica. E, se formos ver a etimologia, a palavra “arte” deriva de uma expressão latina relacionada a técnicas e habilidades, que foram ensinadas por muito tempo em guildas até que academizassem a arte. Mas se, esteticamente, a pintura hiperrealista se assemelha a uma foto em alta definição, qual é o valor artístico do hiperrealismo? Se uma fotografia artística tivesse meramente o objetivo de se assemelhar a uma pintura, qual seria seu mérito? Se um livro tem o objetivo de emular a linguagem do cinema, qual é o seu valor literário?

Não sei, mas dá pra dizer que a representação da realidade cumpre dois objetivos principais:

  1. Retratar o que poderia ser, mas não foi;
  2. Retratar impressões e análises sobre o que foi.

Como de costume, lá vou eu me refutar no meu próprio texto.

 

6.

Quem acompanha meu conteúdo no Telegram sabe que uma tecla em que eu bato muito é na especificidade na arte. Eu advogo por uma arte idiossincrática, constrangedoramente específica. Mas a real é que as peculiaridades da vida real não são suportadas de forma plena pela arte — e se pá a beleza da arte tá nisso: na tentativa. Mesmo que premeditadamente falha.

A vida real tem detalhes inúteis, sem nenhum propósito no nosso storytelling. Como explicar um cearense militar com uma aventura post mortem no Rio de Janeiro, sendo que nenhuma dessas especificações têm uma função na narrativa? Narrar esses detalhes, que são reais, soaria como um desperdício de linhas e tempo do leitor, comprometendo o foco da narrativa.

Por isso o Quincas não foi cabo Plutarco.

Mas se a realidade não cabe num romance realista, por que ele tem esse nome? Se uma história precisa seguir a jornada do herói, por que ela se propõe a ser realidade quando não é? Por que isso parece ser realidade?

No livro Como funciona a ficção, o ensaísta James Wood fala sobre isso citando uma infinidade de autores, já que esse assunto já foi mais debatido que o limite do humor:

“Barthes argumentava que não havia maneira ‘realista’ de narrar o mundo. [...] O realismo não se refere à realidade; o realismo não é realista. O realismo, dizia Barthes, é um sistema de códigos convencionais, uma gramática tão onipresente que nem notamos como ela estrutura a narrativa burguesa.”

O autor argumenta que essas formas narrativas adquiriram caráter universal a ponto de não terem seus artificialismos questionados. Pra simular a realidade, as narrativas literárias e cinematográficas incluem detalhes mundanos pra emular emoções e fingir que aquilo é real, porque supõe-se que apenas assim a ficção funcione.

Mas alguns recursos já foram usados tanto à exaustão que não têm, pra mim, o menor apelo. É por essas e outras que eu adquiri tanta resistência pra leitura de ficção nos últimos anos — se tem tanta boa história verdadeira sendo contada, a ficção precisa de algo além pra fisgar minha atenção.

Eu sinto algo que beira o nojo quando leio a tradução de diálogos em livros comerciais — tipo os romances policiais que eu tanto gostava no Ensino Médio, como os do Harlan Coben. Já na época eu abandonei essa forma de literatura e comecei a buscar algo mais parecido com a realidade em forma e conteúdo, encontrando livros policiais brasileiros.

O lance é que, evocando o dilema clássico, a arte imita a vida e isso faz com que a vida imite a arte. Essas obras ficcionais, que tentam emular a verdade, acabam influenciando de fato a vida real. É só ver uma criança que imita a forma de falar dos filmes hollywoodianos dublados — o que acaba perpetuando o imperialismo cultural do tio Sam. Ou, voltando às pinturas, como eu falei na newsletter anterior, a representação do “belo” criou e perpetuou padrões de beleza que se tornaram exigências sociais.

 

5.

Mas não é porque é clichê que não possa ser verdadeiro. Barthes disse que te-amo é a coisa mais batida que alguém pode dizer, mas isso não anula a paixão.

James Wood, no livro que citei acima, utiliza o termo grego hypotyposis, que significa pôr algo diante de nossos olhos e dá-lo vida. Ou seja, a arte não pede que a gente acredite nela, mas que a gente imagine que ela é verdade. 

Daí vem o conceito de diegese, que é o universo em que uma narrativa se insere — ali dentro, tudo é real.

Aristóteles disse que o papel da história é narrar o que aconteceu, enquanto o da poesia é narrar o que poderia ter acontecido. Então ele diz que, na mimese (ou ficção), a fantasia convincente é preferível à realidade inconvincente. Por isso obras ficcionais parecem tão mais críveis que o noticiário brasileiro, que inutilizou o trabalho do Sensacionalista.

A realidade, do jeito que ela é, é implausível. É por isso que quando um empreendedor vai contar sua história de superação ele propositalmente oculta os detalhes que não acrescentam à ideia que ele quer vender — a gente tá tão acostumado com narrativas descoladas da realidade que encaixar a vida em ciclos e jornadas do herói soa mais plausível que a vida nua e crua em si, mesmo que a vivenciemos diariamente. E é por isso também que histórias reais no Twitter costumam ser rotuladas como fanfic.

A minha busca, fazendo arte, é entre esse equilíbrio: ora a mimese, a ocultação de certas idiossincrasias da realidade pra torná-la crível, ora a exposição nua e crua da realidade em seus detalhes mais despropositados. Porque a realidade não obedece símbolos. E, por não obedecer a símbolos, o surrealismo onírico acaba se aproximando mais da realidade do que o realismo artístico em si, que não dá ponto sem nó e vive de dar propósito à arma de Tchekov.

 

4.

É por isso que eu comecei a dizer que o realismo como arte foi deixando de fazer sentido à medida que adquiríamos formas de registrar a realidade — como se a pintura realista fosse inutilizada pela fotografia; como se a narrativa fosse inutilizada pelo vídeo.

Mas é aí que aumenta o interesse por abordagens psicológicas (ou mágicas) da realidade. Os fatos podem ser registrados por um vídeo; mas as nossas impressões sobre o fato são o que tornam a arte única. Seja o exagero nas artes plásticas, seja a representação do sonho, seja uma análise psicológica na narrativa, registrando pensamentos e digressões, como eu falei nesse ensaio curtinho sobre o fluxo de consciência literário.

Citando a mesma frase do António Damásio que eu sempre uso pra falar do assunto, "não há muitas alternativas ao estratagema que a natureza armou para nós. A emoção nos atinge independentemente de onde ela venha".

Se toda a nossa forma de enxergar o mundo depende das emoções, indissociáveis de nós, o que é realidade e o que é fantasia?

 

3.

Quando falo dessa fronteira difusa entre realidade e fantasia sempre lembro de um dos meus romances favoritos: Um lugar perigoso, do escritor carioca Luiz Alfredo Garcia-Roza.

O livro acompanha um professor acometido pela Síndrome de Korsakoff: uma grave doença neuropsiquiátrica que faz com que pedaços de sua memória se percam e, no lugar, ele fabule coisas que se firmam em seu imaginário como verdadeiras.

Por causa da doença, o professor mantém cadernos de anotações com eventos cotidianos pra não se perder nessa linha tênue entre ficção e realidade. Até que um dia, nessas anotações, encontra o nome de dez mulheres e começa a ser atormentado por fragmentos de memórias de uma mulher esquartejada.

Ele cisma que matou as dez mulheres e vai se entregar na delegacia — mas como ele vai ser punido por um homicídio sem corpo, se apoiando apenas em sua memória como evidência, sem saber se é real ou não?

A síndrome existe. E se formos olhar pelo ponto de vista psicológico, nada do que enxergamos é real — é apenas a representação do real. Todas as nossas percepções da realidade são isso: percepções, vieses cognitivos que nos afetam a todo momento, fazendo com que a realidade que você enxerga nem sempre seja a mesma que eu vejo.

É essa fronteira entre o real e o imaginado, ou entre o real e os nossos vieses, que faz com que a “ficção realista” ainda seja interessante. Não pelo que é real, mas pela fantasia inerente à realidade.

 

2.

A humanidade cometeu a cagada de investir toda sua inteligência em tecnologia avançada devotada ao capital antes de investir em avanços sociais. O resultado se apresenta no longo prazo: todos — exceto os donos dos meios de produção — correndo contra a inteligência artificial pra não se tornarem defasados por um software.

E o mesmo acontece com a arte. O Yuval Noah Harari, no livro Lições para o Século XXI, fala sobre como a inteligência artificial, num futuro próximo, pode substituir os artistas. O autor argumenta que softwares poderiam criar músicas personalizadas pra cada pessoa, baseadas em humores e demandas específicas.

E eu sei que é possível, mas discordo em partes.

Se formos olhar pras músicas que mais fazem sucesso, podemos enxergar padrões que vão das temáticas abordadas ao vocabulário utilizado, passando pelos mesmos BPM, mesmos compassos 4/4, instrumentação comum, melodias quantizadas e estruturas idênticas (como o clássico verso/refrão/verso/refrão). Isso a inteligência artificial faria até melhor.

Mas como a inteligência artificial poderia substituir uma mimese implausível da realidade, imperfeita por natureza e ligada a pessoas por essência? A gente tem uma mania de achar que a perfeição é simétrica, mesmo que a própria natureza nos prove o contrário.

Eu gosto muito de um vídeo em que perguntam pro Leminski pra que serve a poesia e ele diz que a poesia não existe por um objetivo, assim como um abraço não serve a uma finalidade específica. E é por não ter um objetivo inerente que nós gostamos de arte (e abraços) e os utilizamos pra quaisquer objetivos: você abraça na alegria e na tristeza e a arte representa tanto o belo como o feio.

E não dá pra substituir esse calor humano por tecnologia.

Pode ser imitado, óbvio. Um robô extremamente fiel à aparência e temperatura humana pode te abraçar, mas a sensação nunca vai ser a mesma uma vez que tu souber que é um robô. A gente tá tão imerso numa lógica de consumo que às vezes até esquece que a humanidade é parte da natureza, apesar do masoquismo.

Os artistas se expressam por vontade e necessidade de ser ouvidos, não porque outras pessoas querem ouvir — por isso todo artista é inconveniente.

 

1.

No começo do e-mail, coloquei um trecho de um dos poemas do meu novo livro, cujo título ainda não confirmei. Eu me propus a colocar em prática de uma forma que ainda não havia feito a especificidade da qual eu tanto falo.

É um exercício de narrar episódios curiosos da minha infância sobre os quais eu não tive explicação — e quem poderia me explicar já morreu. Um dos primeiros poemas que eu escrevi foi sobre um acidente de carro que sofri com minha mãe e meus avós. Inclusive li esse pros assinantes do canal no Telegram, que você pode assinar por aqui.

É contraproducente, comercialmente falando, lançar uma obra tão específica e pessoal, com potencial quase nulo de gerar identificação entre os leitores e ouvintes. Mas é desse tipo de arte que eu mais gosto: a arte que eu ainda não entendo.

Tudo que tá ali é factual, mas a gente precisa ser humilde de aceitar que como humanidade não entendemos nem uma pequena parcela do que é real. A Psicologia, por exemplo, é uma ciência bebê, historicamente falando.

É nesses lugares que a razão ainda não alcança que a arte trabalha melhor. Tentar entender é um exercício divertido e instigante, mesmo correndo o risco de tirar a graça da obra. Eu advogo por essa arte específica, que nunca vai gerar identificação com o grande público, mas vai ser fiel às vidas reais e imaginadas de uma forma que as fará soar como surreais, implausíveis, fantasiosas. E é isso que cativa um pequeno público: uma arte que vai além de simplesmente tomar lados, mas que nunca será neutra, e por isso acaba expondo as inúmeras contradições e dúvidas humanas.

No fim das contas, não precisa ser fantasia pra parecer fantasia — basta a gente não entender. E é essa limitação — que a arrogância do saber criou — que a gente precisa ultrapassar pra conseguir aproveitar a arte de forma plena.

De forma semelhante com o que ocorre no sonho, mas isso é assunto pra outro texto.

que preguiça de Friends

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