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palavras não significam nada

A escola é prima da cadeia,
mas é a melhor que eu tive.
Foucault reprova e incendeia,
mas os livros que me livrem.
Enquanto estudante paga meia
os professores tacam Nietzsche,
mas quando sobra só a candeia
a luz do saber ainda resiste?

Dos livros acadêmicos
eu tô desconectado, saca:
usando outro idioma,
um dialeto ultrapassado
inacessível por definição
que expulsa uns do espaço
trocando escrito assim por ipsis litteris,
bagagem cultural jogada num saco
de lixo enlatado
e primazia linguística,
gírias de senhores de engenho
pra confundir o escravo
e mantê-lo cativo na base da pirâmide
enquanto os ricos terminam o Doutorado
com vaga garantida de juiz
de um tribunal que prende
com sentença que pobre
não entende pois só fala errado.

Os mestres e doutores
me parecem tão longe
do método Freire de construir
letrados usando tijolos —
variação linguística é aceita
na academia, não nas ruas
onde livros criptografam
o que devia ser livre acesso.
Se excludente de ilicitude
é licença pra matar, me explica:
por que famigerados judges
são estrangeiros na língua?
O castelo desmorona e urge
que as sinalizações de emergência
não me considerem um intruso
e falem a língua da clemência.

E é por isso que estudo e escrevo:
pra traduzir. Pra mim mesmo,
pra quem me rodeia,
já nem sei onde estão.
Me perdi no meio de livros que não li,
conhecimento que não sei obter.
Me sinto burro pela manhã,
um gênio pela tarde
e à noite é só preguiça.
Por cólera e reparação condigna,
me aproprio do léxico desses reis
pra ver se, entre dicionários e vigas,
escapo desse império de uma vez.

walter igor, p. 35

 

1.

Quando foi a última vez que você disse que ama seus pais?

Há um bom tempo eu bato numa mesma tecla. Seja observando debates ideológicos, seja conversando com pessoas que amo, seja dando entrevistas mentais, percebo uma coisa: as palavras são barreiras  —  maiores que o silêncio.

As palavras atrapalham mais a comunicação do que a não-comunicação.

Mas vamo por partes. 

 

2.

Eu nunca li Cem anos de solidão, mas o primeiro parágrafo contém uma das frases mais lindas que eu já li:

“O mundo era tão recente que muitas coisas careciam de nome e para mencioná-las se precisava apontar com o dedo.”

Se passássemos a vida toda só apontando o dedo pra essas coisas, elas não seriam menos significativas. Existiam pedras antes que a palavra pedra fosse inventada num idioma primitivo. As regras gramaticais que normatizam essas palavras, obviamente, surgiram ainda mais tarde.

A saudade existe em todos os humanos e até animais, mas nem todos os idiomas possuem uma palavra que a represente. E talvez nem precisem.

Por mais óbvio que isso pareça, muitas pessoas não se dão conta de que, se apontarmos pra uma pedra e dissermos a uma criança que o nome daquilo é roberto, ela vai acreditar. O filósofo austríaco Wittgenstein, na sua obra Investigações Filosóficas, chama isso de “ensino ostensivo de palavras”. Mas não é só assim, ostensivamente, que a linguagem se forma.

Qual é problema de chamar pedras de robertos, sendo que pedras, por essência, não têm um nome?

Um só: a criança não seria entendida. Porque, no nosso país, como um povo, chamamos pedras de… pedras.

Traduzindo em uma frase: palavras só tem o significado que nós damos a elas. E isso acontece de forma social, mas é a partir daí que as coisas se confundem.

 

3.

Wittgenstein, no mesmo livro acima citado, fala sobre “jogos de linguagem”. De forma resumida, jogo de linguagem é um contexto.

Se você tá falando pra sua mãe que a ama, ela vai entender o recado, porque ela tá no mesmo jogo de linguagem que você: “eu te amo” significa carinho especial, tanto pra você quanto pra ela.

O que acontece, porém, se você fala que ama todo mundo, desde cães até desconhecidos na rua? De certa forma, falar “eu te amo” não tem o mesmo peso. Sua mãe sabe que você diz “eu te amo” até pra atendentes de caixa que nunca tinha visto, então a expressão isolada não significa tanta coisa.

A pessoa em quem você tem interesse romântico, por outro lado, não sabe que você diz “eu te amo” pra todo mundo. Quando diz pra essa pessoa, ela fica assustada porque as coisas estão indo rápido demais.

Por quê? Jogos de linguagem diferentes.

E, mesmo que ela soubesse da sua abundância de te-amos, o lugar, o momento e a forma como esse te-amo é dito pode dar um peso bem diferente à expressão, mesmo que esteticamente ela seja a mesma. 

Qual é o ponto?

 

4.

No exemplo da sua mãe, o sentimento que você sente por ela não diminuiu. Só aumentou. Mas é como se “eu te amo” não fosse mais suficiente pra expressar esse afeto, porque você usou tanto que ele perdeu o significado. Foi sobre isso que falei nesse poema aqui.

As mesmas palavras podem significar coisas diferentes dependendo de quem as fala, da época em que elas são ditas e até da quantidade de vezes que nós as pronunciamos. E é por isso que palavras são barreiras: não tem como garantir com certeza que estamos no mesmo jogo de linguagem dos nossos interlocutores.

Só que, na prática, como isso influencia nossa vida? As palavras impedem debates, tornam nossas ideias simplórias e vagas, fazem com que às vezes seja impossível nos expressar a outras pessoas, entre inúmeros outros problemas sobre os quais ainda pretendo falar.

 

5.

Quantas vezes você leu sobre relacionamentos tóxicos essa semana? Uns anos atrás, se tornou comum rotular dessa forma um relacionamento abusivo. Tóxico, nesse caso, representa abusos psicológicos, possessividade, ciúmes exagerados, manipulação, agressividade verbal, gaslighting, entre outros sintomas e sinais.

Mas o termo, hoje, é tão usado – sendo reproduzido até em memes que chamam algumas pessoas de “Chernobyl” de tão tóxicas – que perdeu o peso. Amizade tóxica, pais tóxicos, celebridades tóxicas. Qualquer coisa pode ser tóxica. Um ano atrás, era algo extremo. Hoje, é comum rotular dessa forma e o peso de usar essa expressão já não é tão grande, e a tendência é que se torne cada vez menor.

Quando eu chamo de tóxico o amigo que só me chama quando precisa de algo e chamo de tóxico o namorado que bate na namorada, eu não tô aumentando a gravidade da atitude do amigo – eu tô amenizando a atitude do namorado.

É por isso que eu sou pouquíssimo apegado à origem e às definições exatas de qualquer palavra. Uma palavra surgida séculos atrás pra falar de uma cesta pequena hoje é usada pra se referir vulgarmente ao órgão genital feminino. Inferno, que já foi um palavrão em tempos de hegemonia católica, hoje é só mais uma palavra. Coitado, que significava nas cadeias alguém que havia sido estuprado, hoje é um adjetivo atribuído a alguém que passou por uma situação ruim.

Pederastia, por uma definição nem tão antiga, significa prática sexual entre um homem e um rapaz mais novo. Mas basta assistir a uma batalha de rima na periferia pra entender que o termo é usado popularmente como sinônimo de zoação que leva pro lado pessoal.

A origem de uma palavra não importa, porque ela não significa nada. Mas isso finalmente nos leva a questões de maior relevância:

 

6.

Um dia desses, uma amiga minha tava comendo pizza com uns amigos. Uma conhecida dessa amiga, que tava na mesa, é negra. O papo era comum: crushs pra lá, interesses pra cá. No meio disso, a amiga negra tava dizendo o quanto ela se sente mais atraída fisicamente por brancos, por serem mais bonitos.

Peraí.

A ideia de que a beleza dos brancos é superior é perpetuada há gerações, inclusive em obras de arte como A redenção de Cam (sobre a qual falei na newsletter anterior).

Mas a pessoa que disse isso era uma negra, como a vó do quadro. E, segundo ela, tinha a ver com o gosto pessoal dela. Gosto não se discute, né? Se você perguntasse se ela considera brancos superiores aos negros como raça, ela negaria.

O que acontece se você chama isso de racismo?

Você fecha as portas pro debate: ela vai negar por não se considerar racista (“mas eu sou negra!”). Se até um branco com amigo negro usa o amigo como escudo, imagina uma pessoa negra. (O que dizem é que negros "reproduzem racismo", não são racistas.)

Pra discussão chegar em algum lugar, com a mulher entendendo que reproduzia uma ideia racista que inferioriza a própria raça, os rótulos deveriam ser evitados. Por quê? Porque são jogos de linguagem diferentes, com o termo “racismo” significando coisas distintas pras duas pessoas, uma delas não entendendo a seriedade nem as implicações do que apoiava.

Alguns enxergam apenas uma realidade material e imediata, reconhecendo como “racismo” só os ataques verbais e físicos diretos de um branco contra um negro. Outras pessoas, já conseguem enxergar algumas nuances e a violência simbólica de olhares e preconceitos implícitos. (Sobre esse lance mais implícito eu falei nesse outro texto.)

É contraproducente usar expressões que podem ser interpretadas da forma como convém ao interlocutor. Se eu quero falar de um problema, eu vou descrever esse problema de forma específica e acessível, em vez de resumi-lo com um termo sujeito ao esvaziamento semântico.

Não, eu não tô dizendo pra parar de falar sobre racismo, como disse o Morgan Freeman. Nem pra abolir o termo “racismo”, nem pra abolir qualquer termo da língua portuguesa. É importante que tudo isso exista, da forma como as coisas são hoje, até porque isso não depende de mim e de você individualmente.

Mas deixa eu dar outro exemplo pra você entender como as palavras nos atrapalham.

 

7.

Duas pesquisas sobre abuso sexual infantil são realizadas com homens. Em uma delas, perguntam quantos deles sofreram abuso sexual na infância.

São poucos.

Em outra pesquisa, porém, perguntam quantos deles haviam tido experiências sexuais, na infância, com adultos, descrevendo de forma específica as situações de forma que eles identificassem o que era o “abuso”.

O número resultante foi consideravelmente maior. Por quê? Porque, se não houve uma educação na infância, as crianças nem sabem o que é abuso e o que não é. Esse termo pode significar qualquer coisa. E o sucesso da pesquisa vai depender muito da definição do termo com a qual os pesquisadores vão trabalhar. Até mesmo o fato de alguns meninos terem experienciado uma ereção durante a situação de abuso (que o abusador usa como argumento pra dizer que ele gostou) faz com que esse termo não seja bem entendido.

Usar um termo no lugar da descrição específica da situação-problema pode levar a um erro enorme na forma como enxergamos e documentamos a realidade.

O ponto aqui é o seguinte:

Nós nos perdemos em termos específicos por ter muito apego a definições que diferem de acordo com múltiplas variáveis.

Eu percebo que, quando surge o termo “cultura de estupro”, alguns entendem que este se refere ao machismo e ódio às mulheres implícitos na sociedade e na mídia que fazem com que as mulheres sejam rebaixadas e homens se sintam no direito de posse do corpo delas. Isso é gravíssimo. Mas alguns, que apoiam mesmo que indiretamente a “cultura do estupro”, rejeitam o termo, pois não são a favor do estupro.

Se você perguntar pra estupradores condenados, nem eles vão se dizer a favor da violação do corpo feminino – porque muitos sequer entendem o que fazem como “estupro”, que é o termo mais aceito pra rotular o comportamento.

Dessa forma, o termo “cultura de estupro”, se usado em um debate com alguém fora da bolha conscientizada acerca do assunto, pode empobrecer o debate e fechar as portas pra informação (e segurança), com o grupo se dividindo pela metade conscientizada e a não-conscientizada.

Novamente: rotular se torna uma barreira, porque palavras servem como barreiras. Precisamos treinar nosso senso crítico e didática de forma que possamos dialogar, utilizando palavras, sem que palavras se tornem obstáculos. A realidade deve ser vista da forma que é, não sob a interpretação de uma palavra – a realidade vem antes da palavra, nunca o contrário.

E isso é muito difícil. Mas não tô dizendo que os termos e definições devem ser abolidas – só que elas deviam ser usadas apenas entre pessoas que já possuem conhecimento sobre o assunto. Lançar uma palavra solta, sem que o interlocutor saiba o significante, é colocar o carro na frente dos bois. Tipo a Kéfera soltando um "manterrupting" do nada.

Por último, mas não menos importante, tudo isso me leva a um questionamento:

 

8.

Faz sentido abolir uma palavra por sua origem?

Essa é uma dúvida real e eu aceito com toda sinceridade qualquer pitaco sobre o assunto (desde que haja embasamento e sentido). Mas vamos aos fatos e algumas impressões que tenho sobre eles.

De uns anos pra cá, surgiram inúmeros debates sobre expressões com origens racistas, antissemitas, machistas e intolerantes. A escrita “humanizada”, pelo menos na minha bolha de comunicação, tem sido buscada como uma forma de combater a opressão direcionada às minorias.

Expressões, como “negro de alma branca”, são em si inegavelmente racistas, por colocarem como desejável a branquitude “de alma” pra um negro ser aceito.

Mas outras expressões, como "denegrir", têm origens questionáveis e sequer são utilizadas popularmente em contextos racistas, tendo sido problematizadas apenas por sua suposta origem. A expressão "denegrir", etimologicamente, trata apenas de pigmento ou depreciação, como significados distintos e sem associação à melanina de forma pejorativa. E é daí que surge o questionamento:

Faz sentido abolir essa palavra pela dúvida levantada acerca de sua origem, que sequer foi confirmada?

“Kalew, mas o que que custa deixar de falar uma expressão?”

Não custa nadinha. Eu mesmo evito ao máximo até usar “claro” de forma afirmativa, desde que um militante do movimento negro me falou do contexto racista da expressão. Que eu nem lembro nem confirmei, mas a fobia à expressão ficou.

Enquanto certas expressões remetem ao passado escravocrata dessa terrinha que chamamos de Brasil por causa da commodity que roubaram dos povos originários, outras expressões já foram ressignificadas, perdendo o suposto significado original. Você nunca vai ver um sulista dizendo pro outro: “eu vou te denegrir”, de uma forma racista.

Essa palavra passou a ser usada de formas bem diferentes.

Mas, quando foi levantada a discussão sobre sua origem, o que ocorreu? A carga racista da palavra, se nunca existira, agora existe. E denegrir se tornou de fato uma expressão racista.

O que eu tô tentando dizer é que os significados vão e voltam. Não vejo sentido em sermos preciosistas com o significado das palavras e sua origem etimológica, porque mudam o tempo inteiro. Palavras que se originaram no preconceito não carregam preconceito pra eternidade, a não ser que elas continuem sendo usadas em contextos preconceituosos. Da mesma forma, palavras com origem comum, como o reino animal, não são eternamente comuns; se forem usadas de forma preconceituosa, como “macaco”, elas se tornam preconceituosas.

E, mesmo assim, não em todo contexto; se você for no zoológico, ainda vai apontar pra um Primatomorpha e dizer: “olha lá o macaco”. E ele não vai ficar ofendido. E uma pessoa negra também não vai.

Se, como sociedade, passarmos a usar a expressão “couro” pra nos referir pejorativamente a negros, “couro” vai passar a ser um termo racista. É assim que as palavras adquirem significado.

O problema não tá na expressão, tá no significado que é dado a ela. Enquanto existir racismo, palavras vão ser usadas pra representá-lo. De novo, não faz sentido colocar o carro na frente dos bois: proibir a palavra "pedra" não vai impedir que joguem ela na minha cabeça.

Mesmo que denegrir tenha de fato uma origem racista, isso não importa pro ponto que discuto aqui. O que realmente importa é qual significado é atribuído a uma palavra hoje, na nossa região, no nosso círculo social.

Se eu ler um texto de 1802, é importante que eu saiba a denotação dessas palavras naquela época. Da mesma forma, meus textos, se sobreviverem mais alguns anos, deverão ser analisados à luz dos significados atribuídos socialmente a essas palavras hoje, de preferência entre pessoas da minha idade e da minha localidade.

Mas, como se não bastassem as argumentações e discordâncias infinitas a respeito de significados constantemente mutáveis, as palavras nos dividem de outra forma. Por ter dito isso aqui em cima, já fui interpretado como o cara que ignora o passado racista do nosso país, afirmando que devemos só olhar pra frente.

E não é o que eu acho. Já falei em outro texto sobre como ignoramos o passado achando que somos folhas em branco, como disse o Jessé Souza. Não tem como manter um povo como escravo durante 75% da história de um país e achar que não haverão consequências no futuro, que é só libertar os escravizados que tá tudo bem. Aqui eu tô falando única e exclusivamente da linguagem, e eu entendo quem argumentar que se aplica apenas a alguns casos, porque eu mesmo não tenho uma certeza sobre o assunto.

Mas enfim. Divaguei. Então vou concluir:
 

9.

O papel de quem se comunica é traduzir. Expressões acadêmicas, não entendidas pela população em geral, não deveriam prevalecer no debate público e o conhecimento precisa ter seu acesso democratizado. Não se trata de rejeitar o conhecimento por ele ser da elite, mas sim de tirar o conhecimento da elite e trazer pra todo mundo. Mas isso é assunto pra outro texto.

Quando eu converso com amigos e conhecidos sobre quaisquer desses problemas, acho importante ter em mente isso tudo que falei. Até quando tô em conversas banais eu tenho em mente que preciso tá no mesmo jogo de linguagem da pessoa pra que ela me entenda. Já tive inúmeras discussões com uma amiga que discordava da existência da “pressão social” e aprendi que essa discussão era puramente etimológica: quando expliquei o que chamo de pressão social, concordamos. E eu parei de usar a expressão, passando a descrever o problema em vez de rotulá-lo.

Por ora, eu deixo essa pergunta pra vocês (porque eu não achei resposta): Será que faz sentido comprar sempre o papo de que uma expressão deve ser abolida por sua suposta origem? Ou isso é tirar o foco do problema principal?

Será que faz mesmo sentido pedir que a população INTEIRA pare de usar "retardado", por ser capacitismo, ou a academia que devia adotar um termo novo pra definição da patologia?

Enfim. Muitas perguntas, poucas respostas. Me dêem aulas porque tô com preguiça de pesquisar mais sobre o assunto. Melhor usar meu direito de ficar calado.

tô guardando esse texto há mais de um ano, tá maluco

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