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“Eu não vou deixar que o tempo se esconda para mim. E enquanto ele corre, enfim tudo possa voltar pro seu lugar.”
Fran Gil e Chico Chico
Terminei essa news ouvindo o cd novo de Fran Gil e Chico Chico e pensando quanto o chichêzão de como o tempo coloca as coisas no lugar, não sem antes passar por cima. Nos tira coisas mas também pode dar, lá na frente, um presente como esses dois são, vindos de dois artistas tão preciosos. As três coisas que trago hoje tem muito a ver com o tempo e suas voltas.
Estou absolutamente lisonjeada de ter um texto de meu querido amigo e escritor talentosíssimo, Wigvan. Para quem não conhece, segue ele lá no instagram. Quase eu travo, sem saber o que colocar junto a uma preciosidade dessas que ele me trouxe. Resolvi falar sobre como Hamilton, o musical, mexeu comigo e fazer uma singela homenagem a minha mãe (era só para ela, mas ela disse pra colocar aqui).
#Descrição: Separador de texto com uma ilustração de ondas em traços simples ao centro, com uma fileira de bolinhas no lado direito e outra fileira de bolinhas no lado esquerdo.
Eu sei que é tarde, 2020, mas eu cheguei agora na estação de fãs obcecadas pelo musical Hamilton. Ouvia as pessoas comentando e eu só sonhava em ver ao vivo, caçava um ou outro vídeo no youtube, mas o stream da Disney lançou o espetáculo completo e eu baixei o com legenda em português. (Obrigada, Torrent)

É realmente isso tudo que dizem, é inovador, é bem feito, não tem uma ponta solta, o elenco é impecável. Por vezes, você se sente sem fôlego. De todas as coisas que gostei muito, trago o que mais me tocou. A dança eterna entre a segurança e liberdade, o desafio de ser enfático sem ser precipitado, representados por dois personagens: Aaron Burr e Alexander Hamilton.

Acho que não preciso tanto me preocupar com spoilers, o que trago sobre os personagens já vai se delineando nas primeiras notas. Alexander Hamilton é um órfão, imigrante, bastardo, que vira um dos fundadores dos EUA. Braço direito de George Washington, formulou as bases do sistêmica econômico do país, após lutar na guerra da independência. Antes disso, foi sua genialidade com as letras que o fez emigrar, mesmo não tendo condições financeiras, para Nova York. Foi também com o mesmo fervor na escrita que defendeu a Constituição e conquistou sua mulher, Eliza.

De cara, deixa claro que a relação que ele tem com a vida é a de não desperdiçar uma chance que seja, se lançar. Colocar sua cabeça para funcionar, sua pena para escrever, como se não tivesse tempo, nem que isso faça ele parecer inadequado, apressado e, eventualmente, perigoso, um alvo. 

A forma como Hamilton não tem medo de dar suas opiniões é, de cara, rechaçada por Aaron Burr, seu antagonista. “Sorria mais, fale menos” é o conselho dado por Burr assim que os dois se conhecem. Em oposição ao espírito desbravador de Hamilton, ele é uma pessoa comedida, muito preocupado em só agir estando certo. Na música em que ele desenha seu personalidade, Burr canta sobre estar disposto a esperar pelo que é dele. Seja no amor de Theodosia, sua amante casada com alguém do outro lado da trincheira, seja em se tornar o homem que prometeu que seria a seus pais, antes de morrerem. Uma espera inimaginável para um Hamilton que se diz jovem e faminto como o país que ele está tentando fundar. Por essas diferenças, eles irão rivalizar durante toda trama. 

Quanto a mim, oscilo na vida, entre Hamilton e Burr. Senso de urgência é um velho conhecido meu. Em uma de suas frases repetidas em vários trechos, Hamilton diz “eu imagino tanto a morte que me parece mais como uma lembrança” e eu percebo o quanto o relógio gira diferente para quem tem a morte como algo não tão distante, quem já viu ela passar perto. Seja por conta de um diagnóstico, um ente querido perdido, o gênero a qual pertence, a cidade onde mora.

Não nego que é um tanto espinhoso navegar neste tema, especialmente esse ano, que nos empurra para vontade de viver as coisas, mas estamos impedidos fisicamente boa parte do tempo. Não é como se fosse uma atitude consciente, um pensar na morte, é quase como um filtro desses de fotos, que coloca uma ou outra cor, a mais ou a menos, nas cenas. 

Vai sempre existir algo em mim que faz as coisas parecerem para ontem, que eu preciso me mover para qualquer direção que seja. Mas como nada acontece de forma fluida, eu também tenho um tanto de Aaron Burr no meu jeito de ser. Talvez a própria deficiência forçou em mim essa habilidade de planejamento, nada se faz sem planejar quando se tem uma deficiência. A dependência no outro, as cidades inacessíveis, um corpo que, às vezes não colabora, sempre nos deixa pensando um passo à frente. De novo, não é consciente, emerge do nada, quando vejo, já estou ponderando cada cenário. 

Enquanto o lado Hamilton grita que não vai desperdiçar chances, boa parte do tempo, o lado Burr também tenta me convencer que que eu não estou parada quando estou à espreita, esperando o momento certo. Eles vivem duelando mas sem grandes perdas, afinal como diz o título da música do duelo final, o mundo é grande o bastante. Cabe essas duas formas de ver a vida que, por mais incongruentes que pareçam, são faces da mesma moeda. Já entendi que não é preciso matar um desses lados para seguir, mas que a competição será sempre acirrada. Nenhum desses lado é capaz de conta sozinho da vida e pode ser visto como vilão ou salvador da pátria, a depender dos resultados que me tragam. Só sei que a experiência não é tão bonita e musical quanto em Hamilton, quando acontece dentro da gente.
#Descrição: Separador de texto com a ilustração do rosto de Mila em traços simples ao centro, com uma fileira de bolinhas no lado direito e outra fileira de bolinhas no lado esquerdo.
Eu nasci da teimosia de minha mãe. E como teima é um negócio que demanda tempo, eu vivo há 33 anos da teimosia da minha mãe. Não que meu pai não fosse teimoso, mas ela é bem mais. 

Teimou que amor podia acontecer duas vezes. Separou do primeiro casamento, que tinha sido bom, tinha dado em três filhos, um sogro e duas sogras, cunhados, cunhadas e sobrinhos. Uma enorme família que segue perto até hoje, graças ao amor e a teima.  

Diziam que uma mulher separada de três filhos, talvez, tivesse dificuldade de achar marido. Nem deu tempo dela dar assunto, logo depois achou meu pai. Um pouco mais jovem, queria filhos. Minha mãe tinha as trompas ligadas, mas teimou que iria dar a esse homem, Antônio, como o santo, uma criança para ele ter nos braços. 

O primeiro não vingou, ela continuou. Um pouco mais de teima e veio eu. Nas fotos que tenho de bebê, já dá para ver como cada teimosia bem sucedida dá a ela um brilho nos olhos que eu julgo ser seu segredo de beleza. 

Dali a pouco, eu comecei a cair e a não levantar. “Essa menina tem alguma coisa”, ela dizia insistemente. E a cada médico que dizia que era nada, ela não esmoirecia. Ia, com meu pai na retaguarda, teimando por aí que eu tinha, sim, algo. Até que eu tinha mesmo. Dessa vez, talvez, o rosto não tenha brilhado. 

Mas não dava tempo de esperar, havia muito o que teimar pela frente. As próteses de perna que todo mundo dizia que não adiantaria, que ia entortar do mesmo jeito. As fisioterapias. Até a ortodontia que ela persistiu enquanto nem a dentista botava fé, só enrolava. 
Nisso eu fui crescendo e aprendendo, tanto a teimar, quanto a ceder. E quando ela ficou sozinha sem meu pai, arrumou em mim e meus irmãos os seus soldados que guarneceriam as posições enquanto ela teima em cada fronte. 

Olhando aqui, percebo as batalhas vencidas em cada movimento do meu corpo que ainda tenho, no ar que entra pelos meus pulmões que ela sempre teimou em cuidar do jeito que ela sabia,e assim me afastou dos internamentos tão comuns a quem tem amiotrofia. Ser teimosa não só me manteve mas também me ensinou a ser igual, porque não dá para estar nessa vida sem um pouco de talento para a insistência. 

Daqui a vejo boiando, lindíssima, na piscina que ela teimou em fazer ano passado. Com rampa e corrimão, para que eu e ela possamos entrar com segurança. Eu dizia “perae, mãe, ano que vem a gente faz.” E pra teimosia não tem amanhã, é agora. Como eu disse, a teimosia dá a ela um certo glow que, somado ao reflexo do azulejo claro então, emoldura bem seu rosto. Enquanto ela gargalha e se gaba, cada vez que me vê curtindo a tal piscina “diga aí se eu não fosse teimosa?”

Ela sabe que, se ela não fosse teimosa, eu não estaria aqui. Tirando algo de bonito de tudo que eu vejo, como ela me ensinou. Insistindo num ano que parece que quer que a gente desista. Enquanto termino esse texto, ela sai da piscina para se vangloriar de novo da sua mais recente teimosia: meu quarto que ela resolveu, sob meus protestos em plena pandemia, reformar. E, mais uma vez, tudo reluz nesse seu mais novo empreendimento, que tanto me beneficia. Eu reviro os olhos, para não dar muita ousadia mas meu sorriso me entrega, afinal sou a sua maior e mais insuportável teimosia.

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#Descrição: Separador de texto com a ilustração de uma rodela de limão em traços simples ao centro, com uma fileira de bolinhas no lado direito e outra fileira de bolinhas no lado esquerdo.
De repente, me bateu uma saudade de Wigvan, mandei mensagem e ele me disse "ia até te mandar um texto meu hoje". A gente tem dessas coisas, parece que a gente se fala por telepatia, somos tão próximos mesmo longe. Eu só tenho a agradecer por ter ele em minha vida. Daí, ele deixou que eu trouxesse para vocês essa lindeza de texto, precioso como tudo que ele faz. Sigam ele no instagram e podem ver seu rostinho lindo num vídeo recitando o texto abaixo: 

"Sobre Perdas.
 
Eu li o poema da Bishop. Li, não, fui atropelado por ele. Lembrei de um filme que eu vi na adolescência. Damage, do Louis Malle, que em português ficou “Perdas e Danos”. A personagem da Juliette Binoche, em determinado momento, diz algo como “Pessoas sofridas são perigosas porque elas sabem que podem sobreviver”. Achei profundíssimo, aos 14, escrevi na capa do caderno e tudo.

Ficava olhando para aquela frase e, vez ou outra, ela me engolia. Da aula de matemática, eu caía em um abismo. Eu já tinha perdido tanto aos quatorze. O amigo que morreu ao atravessar a rua. Outro que levou um tiro ao furtar uma lata de leite em pó. A madrasta da avó. O tio que tocava sanfona. O avô. O primo que morreu ao nascer, esse absurdo que é a vida, a primeira grande dor que eu me lembro de sentir. Essas, que rasgam a gente. Eu tinha seis anos, mas lembro em detalhes. Madrugada de julho. Minha irmã e eu no quarto da minha mãe, elas na cama, eu em um colchão perto da janela que dava pra rua. Meu pai, trabalhando na festa da cidade. Minha tia bate na janela chamando o nome da minha mãe. Sua voz me percorreu como uma descarga elétrica. Depois, o caixão do tamanho de uma caixa de sapatos. Branco. Minha prima, entrando na casa amparada pela mãe, cansada do parto. O cheiro de chá de folha de laranja, misturado com vela, misturado com cigarro, misturado com perfume barato, com barulho de gente comendo, de gente falando amenidades, o capítulo da novela das oito. Aquele dia vai me acompanhar para sempre. Foi minha primeira grande perda. Gabriel.

Mas eu também me perdi em alguns anos. Fiquei ausente da minha própria vida, que era violenta demais para que eu conseguisse enfrentar estando dentro do meu próprio corpo. Aos quatorze eu já entendia muito sobre perdas e danos, principalmente sobre danos. Esses que não se apagam fácil assim. Você pode colorir as cicatrizes, mas elas estarão sempre lá – e eu as carrego com o orgulho de um herói de guerra, afinal, eu sobrevivi. Mas eu ainda aprenderia muito. Meus últimos dez anos foram de muitas perdas. Muitas. Uma só já seria um inferno, mas eu mal acabava de enfrentar um luto: outro. Fiquei ausente de mim, de novo. Fiquei parado no meio do mar, me acostumei às águas, ao frio, ao vento. Até aprender um jeito de respirar no fundo – de mim mesmo, da vida, do tempo. Até conseguir ter força, no pulmão, nos braços e no desejo para conseguir voltar ao controle de tudo.

Pessoas sofridas são perigosas. Eu conheço a anatomia da dor. Eu conheço a anatomia do desastre. Cada perda é um desastre, mas nenhum é tão grande quanto perder a si mesmo. E isso eu não perco mais. Estou ancorado em minha própria vida. Eu li em um blog de uma moça da faculdade em que estudei em Portugal a citação de um padre: “Tem duas coisas de que sei que não vou morrer – de parto e de medo”. Nada me assusta mais. A falta de medo é o melhor tipo de liberdade. Nada me dobra. Nada me magoa ou entristece além da conta. Aprendi a escolher aquilo que quero perder e a não levar para amanhã a dor de ontem. 

Perder abre espaço. Eu posso me organizar melhor agora que tenho pouco. E, sobretudo, consigo olhar para aquilo que ainda tenho e amar como se deve. Amar no presente. Porque, no próximo instante, aquilo que ainda tenho pode não estar mais lá. Comemoro cada presença, cada segundo, cada palavra. Aquilo do Hemingway de que se deve olhar tudo como se fosse pela última vez. Mas não de um jeito melancólico. É como se cada pessoa fosse um baile de formatura que se deseja por muitos anos e, quando a esperada noite chega, você sabe que tem que aproveitar ao máximo porque é o tipo de coisa que não acontecerá de novo, daquele jeito, com aquele sentimento. Talvez eu não tivesse feito tantos amigos nos últimos anos se eu não os visse, a cada encontro, com a alegria de uma festa que nunca irá se repetir – e que, por isso, também nunca terá fim, no tempo da memória. Muitas partes minhas ficaram pelo caminho, mas eu acho que não precisava delas tanto assim, estou mais leve agora, pluma, quase. É por isso que, apesar de qualquer coisa e até de mim mesmo, estou sempre sorrindo. Perder abre espaço. Até para ser feliz, por irônico que possa parecer. Viver nunca é tarde."


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