Cíclico
Fui dormir tarde. Era madrugada, e eu quis aproveitar a chegada da Lua Cheia para ficar apenas respirando. Da minha janela, não consegui ver a Lua propriamente dita, mas fui banhada por com sua luz e acarinhada pelo ar fresco que faz à 1 da manhã.
Faltam poucos dias para o fim do verão, e não sei exatamente o motivo, mas estou sentindo mais desta vez. Os ciclos se encerram para abrir espaço para uma nova temporada, que eu desejo que seja tão bonita quanto os entardeceres de outono.
A morte e o renascimento sempre estiveram invisivelmente presentes. Quantas relações começam e terminam? Quanto ciclos estudantis, empregatícios, de viagens e tantos outros etc. que nascem e morrem todos os dias? Aliás, o próprio dia se renova com sua eterna dança de luz e sombra, nos preparando para o gozo e para o desprazer diários. Se a Natureza é tão sábia, por que nós, humanos, não aprendemos? Há formas de nos prepararmos de fato?
O dia nasceu ensolarado, mas logo a tempestade chegou: água evaporada que se desmanchou no ar. Amanhã mudamos de mês, o que me faz lembrar da Elis Regina e do Tom Jobim cantando sobre “as águas de março fechando o verão”. Mais um deleite artístico falando sobre “a promessa de vida no teu coração” que os fechamentos de tantos ciclos trazem. Se todo clichê tem um pingo de verdade, todo fim traz consigo um recomeço. Não importa em que esfera ele se dê.
Mas por que falo tanto sobre ciclos?! Em março completo um ano trancada em casa, sem estar com os meus amigos, sem perambular por aí. “O útero da minha cidade é o meu lar” — escrevi no dia 20 de janeiro de 2021, no meu diário. Faz muito tempo que não me sinto em casa, mesmo estando 100% do tempo nela. Sendo um ser que ama conexões e ama estar entre pessoas, só não me sinto mais morta por dentro, porque a arte me sustenta.
Conversando sobre tudo isso na terapia, minha psicóloga me disse um “Fê, você sabe, nada é para sempre, tudo é feito de ciclos”. Nem sempre as coisas acontecem na velocidade que eu quero, mas ter esse lembrete dos ciclos como um plano de fundo, me ajuda a manter um bocadinho da esperança em tempos tão egoístas e sombrios.
Não sei se a gente consegue, de fato, aprender com a Natureza e encarar com mais naturalidade os pequenos processos diários de morte e de renascimento. “A heart that is broken is a heart thar is open” é um verso do U2 que me põe para pensar no quanto esses fins nos preparam para o que vem depois, mesmo que a gente não saiba muito bem o que é esse depois. Pensando por esse viés, cada vez mais vejo a vida como um terreno fértil em que o solo é um grande depende. Falando da minha vida pessoal, talvez eu tenha aprendido a observar melhor como eu ajo e reajo a esses fechamentos. Estou dizendo que é fácil? Claro que não. Mas quantos amigos que seguiram um rumo diferente? Quantas vezes não tive o coração partido? Quantas vezes não vi os exs casando e tendo filhos, enquanto estou sozinha? Quantos projetos começaram e terminaram? Colegas que deixaram de estar comigo diariamente, para serem uma foto numa rede social? Quantos alunos cresceram e ganharam asas? Quantas vezes me olhei no espelho e percebi que não tenho mais o mesmo corpo? A areia da ampulheta está cada vez menor em cima e cada vez maior abaixo. Minha alma de velha, cada vez mais velha, sabe que essas mudanças todas trazem desconforto, mas que o incômodo passa e, junto com a cicatriz, fica também a sabedoria. A sabedoria é a recompensa desse processo e isso, de algum modo, me conforta.
O outro lado da moeda do depende mora, entretanto, naquilo que me atravessa como parte de ser humana, como parte daquilo que não posso controlar. A chuva, os dias, as estações do ano não abarcam o que está no profundo do bicho homo sapiens, esses aspectos não dão conta da empatia. Hoje eu me sinto mais pronta para lidar com a minha própria dor — ainda que ela seja insuportável em alguns momentos e me leve a beira do precipício da desistência —, o difícil é lidar com o sofrimento do outro, isso me atravessa e me consome. Como lidar com tantas mortes, com tanta gente que não se importa? Não há natureza que ensine. Sou drenada por isso.
Queria escrever histórias felizes, mas meu mês foi composto por uma dor que me imobilizou de tal modo que me senti tragada por esse turbilhão notícias sem um pingo de esperança. Sobraram alguns frangalhos. Deles ressurgirei e seguirei em busca da minha própria reconstrução.