“Os militares o prenderam como subversivo, entendendo que Isaias fazia parte de grupos que queriam derrubar o estado para implantar a ditadura do proletariado. Erraram. Mas Isaias era subversivo: o tempo todo, na Ciência, na Educação e na Saúde, criou para transformar. Fez a subversão da inteligência contra a mediocridade; da provocação intelectual contra a acomodação; da verdade no discurso contra a impostura da retórica vazia; da modernidade progressista contra a tradição reacionária. Em tudo que tocou, Isaias foi revolucionário. Plantou e plantou muito. Plantou e deixou para que alguém continuasse” (sic Colli, W.).
O início da jornada
Paulistano, médico, cientista, professor. Isaias Raw, nascido em 26 de março de 1927, começou sua trajetória acadêmica ainda no Colégio Anglo-Latino de São Paulo, onde era estudante. Entusiasta da educação em Ciência a partir de métodos experimentais, Raw construiu em sua escola um Museu de História Natural e fundou a revista Cultus, para difundir informações sobre as novidades na Biologia Moderna. Entre 1945 e 1950, ele cursou Medicina na Universidade de São Paulo.
Em 1952, Isaias foi nomeado para dirigir a seção do IBECC-SP (Instituto Brasileiro de Educação, Ciência e Cultura) — cargo que lhe permitiu organizar e realizar atividades como feiras de ciências, museus, clubes de ciência, treinamento de professores e produção de equipamentos de laboratório. Sua motivação sempre foi garimpar talentos e permitir que os jovens pudessem exercer a Ciência e o método científico na prática. Foi também neste contexto que nasceram os kits e minikits de Química, Eletricidade e Biologia, acompanhados de uma vasta quantidade de material escrito. A iniciativa atingiu grande capilaridade no sistema educacional e foi bem recebida por professores do Ensino Básico.
A visão integrada de Isaias sobre o processo educacional produziu um amplo movimento editorial em São Paulo. Seus esforços resultaram na fundação da Editora da Universidade de São Paulo e da Editora da Universidade de Brasília, sempre com a finalidade de garantir espaços abertos à inovação. Outra de suas contribuições foi a unificação dos exames vestibulares em SP — o que levou à instituição da Fundação Carlos Chagas e do CESCEM (Centro de Seleção de Candidatos às Escolas Médicas), órgão precursor da FUVEST. No mesmo período, Raw fundou e dirigiu o Curso Experimental de Medicina na FMUSP, onde os alunos eram preparados para o estudo de uma medicina científica. Enquanto existiu, o sucesso do curso foi tão grande, que os alunos o colocavam como primeira opção nos exames vestibulares.
O legado de Isaias: contribuições científicas
No início da década de 1960, Isaias já era um cientista reconhecido internacionalmente. De seus diversos trabalhos realizados, ressaltam-se sua participação, com Severo Ochoa, na cristalização da crotonase, enzima do ciclo de oxidação de ácidos graxos; a demonstração da existência de uma via alternativa de transporte de elétrons na membrana externa da mitocôndria; e a demonstração, já em 1955, de que subpartículas mitocondriais eram capazes de conservar energia química na molécula de ATP — destruindo o dogma de que havia a necessidade da mitocôndria estar intacta para haver fosforilação. Como em tudo o que fez, também nestes temas Isaias deparou-se com incredulidade e reservas advindas da comunidade científica.
A sua intensa atividade científica levou Raw a conquistar o cargo de Professor de Química Fisiológica da Faculdade de Medicina em 1964, logo após sair da prisão. Havia sido preso um pouco antes pelos militares, acusado como subversivo. Em 1965, apoiou a Reforma Universitária e, sem o consentimento da Congregação ou qualquer outro órgão, mudou todo o Departamento de Bioquímica para os prédios recém-construídos e semi-prontos do Instituto de Química, na Cidade Universitária. Os demais grupos de pesquisadores mudaram-se no ano seguinte, mas a unidade só iniciou oficialmente suas atividades no novo endereço em 1º de janeiro de 1970.
Do exílio ao recomeço
Por uma infelicidade decorrente da ditadura, Isaias Raw nunca pertenceu formalmente ao IQUSP — em 1969, pouco antes da inauguração do Instituto, ele foi aposentado compulsoriamente. Vendo que suas iniciativas educacionais e científicas estavam bloqueadas, preferiu exilar-se no exterior. Porém, mesmo longe de sua terra natal, Raw teve uma década bastante frutífera.
Primeiro, ele passou um ano em Israel, na Universidade Hebraica. Depois, mudou-se para os Estados Unidos e lá frequentou o MIT, a Universidade de Harvard e o City College de Nova York. Ao longo deste período, participou de vários comitês de ensino; atuou como consultor da Pan American Health Organization; foi consultor do Banco Mundial, para um programa de ensino de ciências na Espanha; foi diretor do programa “What People Eat?”, projeto integrado de química e nutrição desenvolvido no MIT e em Harvard; escreveu livros, dentre eles o “Bioquímica: Fundamentos da Ciência Médica”, editado em 1981 pela McGraw-Hill.
Ao retornar para o Brasil, em 1980, Isaias não aceitou ser reintegrado ao quadro de funcionários da USP. Alegava que o Departamento de Bioquímica não mais necessitava de seus serviços e foi buscar novos ares. Neste sentido, trabalhou por algum tempo no Laboratório Lavoisier de Análises Clínicas e, em seguida, foi contratado para atuar no Instituto Butantan. Lá, Raw liderou a modernização das plantas de produção de vacinas e soros e contribuiu para o desenvolvimento de produtos para uso coletivo e promoção da saúde, tais como a vacina contra hepatite B, a tríplice com hepatite B, os primórdios da vacina contra a dengue, a vacina da gripe, da coqueluche, do pneumococo, da hepatite B com BCG e o surfactante pulmonar. Sua última obra no Butantan foi a construção do Museu de Microbiologia — um museu interativo no qual os estudantes secundários podem manipular organismos unicelulares vivos, além de estudar modelos fiéis de vírus, bactérias e protozoários.
Falecido em 13 de dezembro de 2022, Isaias será sempre lembrado por aqueles que o conheceram e por suas inúmeras contribuições nos ramos da Ciência e Educação.
“A trajetória de Isaias foi um perene recomeçar! Como uma faísca incontrolável, ele foi um gerador de iniciativas que sempre tiveram como fio condutor a ânsia de influir na criação de uma mentalidade científica na escola, na empresa e na sociedade. Tudo o que fez sempre tentou abranger o Brasil: educação científica para todos, vacinas para todos, insumos para todos. Neste processo, numerosas pessoas foram envolvidas; agrupamentos foram formados e permanecem, enquanto outros se desfizeram e foram fertilizar novas iniciativas. Foi isso o que, após 75 anos, ficou de Isaias: as ideias, as sementes de transformação e as pessoas que, trabalhando com ele, ele ajudou a moldar” (sic Colli, W.).
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